A ANTRA vem a público manifestar o seu repúdio perante a realização de um evento previsto para acontecer na assembléia legislativa do Rio Grande do Sul, que tem como objetivo principal disseminar informações tendenciosas e de cunho patologizante em relação aos cuidados de saúde das pessoas trans, especialmente crianças e adolescentes, com intuito de negar o acesso à saúde dessas pessoas.
Inicialmente denominada como EPIDEMIA TRANS (SIC), fica nítido o tipo de abordagem que será apresentado pela palestrante, como se a transgeneridade fosse algo passível de ser contagioso ou transmitido de uma pessoa para outra. Tais informações e representações a respeito das identidades trans não se baseiam em nenhuma evidência científica consolidada e estão completamente equivocadas.
Ela sugere que os jovens e crianças seriam de alguma forma “sugestionáveis” a se tornarem transgêneros (quando de alguma outra forma não seriam) em decorrência de alguma espécie de moda ou contágio social. Tais alegações acabam não apenas sendo imprecisas e cientificamente infundadas, mas também coniventes com a reafirmação de estigmas e incompreensões que precisam ser urgentemente superadas, tal como a noção, mesmo que vaga, de que as identidades trans constituem um perigo social a ser evitado.
Inverte a lógica da luta por visibilidade, sugerindo que a representatividade trans nos diversos espaços sociais estaria “incentivando” que pessoas cisgêneras passassem a se identificar como trans – bem semelhante ao discurso fundamentalista que designa e sustenta a “ideologia de gênero” como algo maligno. Abrindo mão de observar as singularidades de cada pessoa e que o fato das lutas trans estarem saindo da invisibilidade ter permitido com que mais pessoas pudessem ser quem são de verdade e passem reivindicar as suas reais existências, não mais sob um viés normativo-cisgênero.
Não existe nenhuma evidência científica capaz de sustentar a ideia de que as identidades trans sejam uma “moda” capaz de “confundir” pessoas suscetíveis. Pesquisas que especulam uma nova forma de ‘’disforia de gênero de surgimento rápido’’ (que atingiria particularmente meninas jovens) estão profundamente comprometidas em função de falhas metodológicas e vieses ideológicos.
E que após a reação de grupos organizados que lutam pelo direito das pessoas trans, houve uma mudança no título com intuito de manipular a opinião pública e a real intenção do evento. Ignorando os avanços das pesquisas e discussões sobre a autonomia e os efeitos positivos de um desenvolvimento livre de estigmas e preconceitos contra a condição trans, para justificar um olhar extremamente arcaico e patologizante e que mantém o poder do saber médico, tendo controle sobre a individualidade da pessoa. A referida palestrante demonstra em seus vídeos, escritas e artigos publicados, uma escolha tendenciosa ao ignorar os efeitos positivos de uma transição em ambiente acolhedor das demandas destas crianças e adolescentes, de forma evitar conflitos e enfrentar agravos na saúde física e mental dessas pessoas pelo não acesso a uma transição social que ele garanta o desenvolvimento pleno de sua subjetividade. Negando a autonomia em busca do reconhecimento da sua própria identidade de gênero, por autodeterminação, como prevêem diversos tratados internacionais e instituições de saúde como a própria Organização Mundial da Saúde, além do previsto no CID-11, atualizado em 2018.
Vemos assim uma defesa violenta do padrão cissexista como norma, onde a própria palestrante resolve abrir mão dos avanços das discussões e estudos atualizados sobre as abordagens terapêuticas a respeito da transgeneridade. Indo de encontro ao próprio entendimento do Conselho Federal de Medicina que reconhece o direito de crianças e adolescentes trans ao acesso à saúde, o que muito nos preocupa. Visto que em nosso entendimento esta abordagem extrapola seu campo de atuação e fere a ética médica ao incidir na divulgação de informações deturpadas que podem trazer diversos efeitos negativos para nossa população.
De forma alguma queremos imputar censura ou impedir o diálogo, acreditamos no avanço das discussões a fim de garantir direitos e não o oposto. E caso a referida palestra apresentasse realmente o sentido de ajudar no debate que se propõe, seriamos as primeiras a defender que o contraditório se estabelecesse, para que a partir daí outro olhar pudesse ser constituído. Mas na verdade o que vemos é um retrocesso bem arquitetado sob o olhar fundamentalista de gênero que está em evidência.
Neste sentido, repudiamos veementemente que esse tipo de atividade ocorra com intuito único de atacar as recentes conquistas de crianças e adolescentes trans, alem da tentativa de negar a estas pessoas o acesso à saúde, e a seus responsáveis que sigam acolhendo seus filhos sem nenhum tipo de discriminação e garantindo o desenvolvimento dos filhos em ambientes saudáveis.
O que precisamos de fato é enfrentar esta Epidemia de ódio que se disfarça de cuidados em nome da manutenção do status de subalternidade das pessoas trans.
Salvador, BA. 04 de março de 2020.
KEILA SIMPSON – Presidenta da ANTRA