ANTRA e GADVs criam petição para exigir punição a deputado transfóbico

Direitos e Política, Notas e Ofícios

Autoras da petição:

ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais) e GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero

Destinatários:

1. Ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal

2. STF – Supremo Tribunal Federal, representado por sua Presidente, Ministra Rosa Weber.

Texto da petição:

As denúncias contra o Deputado Nikolas Ferreira ao Supremo Tribunal Federal (STF) terão como relator o Ministro André Mendonça. E como a maioria das ações acabou focando na câmara e na cassação, estamos mobilizando uma ação com o abaixo-assinado para pressionar o Ministro e o próprio STF para que deem o julgamento devido às denúncias enviadas à corte e responsabilizem o deputado por transfobia.

Em mais um discurso de ódio e violência, o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) usou uma peruca para fazer um discurso extremamente misógino e transfóbico na tribuna da Câmara dos Deputados, em pleno Dia Internacional da Mulher com o intuito de zombar de identidades trans.

Trata-se de discurso de ódio porque obviamente visou criar pânico moral na sociedade a partir de um argumento de espantalho, que inventa um “monstro” (espantalho) irreal e a pretexto de combatê-lo, combate outra situação – no caso, a não-discriminação das mulheres transexuais.

Ademais, configura pura transfobia afirmar que mulheres transexuais seriam “homens (cisgênero) vestidos de mulheres” (sic) e, pior, que bastaria colocar uma peruca e afirmar cinicamente que “agora me sinto mulher” (sic) para deixar de assim se sentir ao retirar a tal peruca ou roupa tida como feminina. E foi isso que fez o Deputado Nikolas Ferreira em seu nefasto discurso de 08 de março de 2023.

O dolo direto do referido Deputado em atacar a dignidade das mulheres transexuais é mais do que evidente e incontestável. Não se pode seriamente dizer que ele não teria tido intenção de atacar as mulheres transexuais com esse discurso gerador de pânico moral.

Só acredita e dissemina a narrativa de que mulheres trans estariam roubando o lugar de mulheres cis aquelas pessoas que negam que estás são mulheres. E isso é uma flagrante denúncia de violência de gênero ao negar e zombar de nossas identidades – garantidas pelo estado brasileiro.

Outrossim, não há que se falar em imunidade parlamentar no caso porque o artigo 53, parágrafo segundo, da Constituição afirma que após a sua diplomação, Deputados(as) e Senadores(as) podem ser presos(as) em flagrante por crimes inafiançáveis. Logo, o Deputado Nikolas Ferreira poderia ter sido preso em flagrante após seu discurso, pois o artigo 5, inciso XLII, da Constituição afirma o racismo como crime inafiançável – donde também o racismo transfóbico, cf. infra. E se Constituição admite a prisão em flagrante nesse caso (de racismo), evidentemente permite o processamento de ação penal que discuta a referida prisão, mediante denúncia ou queixa-crime subsidiária que pleiteia a condenação. Tecnicamente, não se trata sequer de “relativização” da garantia fundamental da imunidade parlamentar, mas de inaplicabilidade da garantia porque a própria Constituição afirmou que ela não incide no caso de crime de racismo.

Nesse sentido, lembre-se que o STF considerou a transfobia e a homofobia crimes de racismo (ADO 26 e MI 4733, j. 13.06.2019), ao praticar discurso de ódio transfóbico, o Deputado Nikolas Ferreira praticou o crime de racismo transfóbico, por praticar, induzir ou incitar o preconceito e a discriminação por raça do art. 20 da Lei 7716/89, no sentido político-social afirmado duas vezes pelo STF (HC 82.424/RS e ADO 26/MI 4733).

E nem se alega o direito fundamental à liberdade de expressão ou de crença religiosa em defesa do Deputado. Como o STF afirma peremptoriamente desde o HC 82.424/RS, o direito fundamental à liberdade de expressão não cria um pseudo “direito” a discursos racistas. E como nossa Suprema Corte reafirmou no final do item 2 da Tese fruto do julgamento da ADO 26 e do MI 4733, o direito de pregações morais e religiosas contra as identidades LGBTI+ não permite que se pratiquem discursos de ódio homotransfóbicos. Para além de religiões cristãs trazerem mensagens de amor e não de ódio, sendo uma deturpação delas praticar discursos de ódio mesmo contra pessoas consideradas como incorrendo em “pecados” (sic), donde uma pessoa genuinamente cristã não pode admitir discursos de ódio a pretexto de “liberdade religiosa”, o fato é que um ESTADO LAICO fundamentações religiosas não podem permitir privilégios a religiosos(as) ou justificarem discriminações jurídicas. Isso porque privilégios e de discriminações odiosas são proibidas constitucionalmente (art. 3, IV, e 5, XLI e XLII, da CF/88). Bem como porque nossa Constituicao veda relações de dependência ou aliança do Estado com entidades religiosas (art. 19, II) e, portanto, com fundamentos religiosos em suas decisões jurídicas e políticas. Sem falar que a liberdade religiosa é um direito fundamental que foi criado para proteger minorias religiosas contra totalitarismos da maioria religiosa e não para justificar tal totalitarismo.

Portanto, a condenação criminal do Depurado Nikolas Ferreira por crime de racismo transfóbico é imperiosa para não se passar uma mensagem de impunidade. Até porque a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem farta jurisprudência exigindo a punição criminal a graves violações de direitos humanos (pelo art. 1.1 da CADH exigir que Estados investiguem e punam violações de direitos humanos), no que, à toda evidência, se enquadra o discurso de ódio racista, logo, o discurso de ódio transfóbico.

Afinal, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans do mundo pelo 14º ano seguido, segundo dossiê realizado pela nossa organização, ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). E a atitude do Deputado, além de ser vergonhosa e lamentável, estimula atos de violência contra pessoas trans e travestis e precisa ser responsabilizada!

TRANSFOBIA É CRIME e é preciso dar um BASTA! ASSINE A PETIÇÃO E EXIJA:

Que o ministro do Supremo Tribunal Federal, André Mendonça, não se abstenha de responsabilizar o deputado pelo discurso transfóbico, com flagrante intenção de inferiorizar e humilhar mulheres trans devido sua condição  – onde aplica-se aos casos de homofobia e transfobia a Lei do Racismo (Lei n 7.716/1989).

Não punir a transfobia explícita deste caso seria consentir a sua naturalização e autorizar que outras pessoas sigam proferindo discursos de ódio contra à comunidade trans.

-> Mendonça, indicado à Corte pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), foi sorteado como relator das várias ações apresentadas contra o deputado federal. É fundamental que a Corte do Brasil não escolha a impunidade como resposta!

Na Câmara, parlamentares como as deputadas Erika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG), entre outros, enviaram notícias crime ao STF e entraram com pedidos de cassação do mandato do deputado, assim como a deputada Tabata Amaral (PSB-SP).

Além destes pedidos, segundo o portal G1, “no fim da tarde, o Ministério Público Federal (MPF) apresentou uma representação à Câmara pedindo que a Mesa Diretora apure a conduta do deputado. A procuradora Luciana Loureiro, do MPF-DF, solicitou que sejam apuradas as violações éticas do deputado.” Em nota: a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), do MPF, manifestou repúdio à fala: “é repugnante um congressista usar as vestes da imunidade parlamentar para, premeditadamente, cometer crime passível de imputação a qualquer cidadão ou cidadã”.

Vale ressaltar que o então deputado já responde por injúria racial transfóbica após chamar a deputada trans Duda Salabert (PDT-MG) de “ele” é negar o respeito a sua identidade de gênero. Mostrando reincidência na disseminação de transfobia.

A sociedade brasileira precisa se levantar em defesa da vida e dos direitos das pessoas trans e travestis, por isso essa petição é uma resposta também a esse ato violento praticado no Dia Internacional da Mulher.

Ainda de acordo com a ANTRA, das 131 mortes em 2022, 130 referem-se a mulheres trans e travestis, que são cerca de 95% dos casos. A pessoa mais jovem assassinada tinha apenas 15 anos. E quase 90% das vítimas tinham de 15 a 40 anos.

Mulheres negras, mulheres indígenas, idosas, com deficiências, mulheres transexuais e travestis merecem respeito na garantia dos seus direitos fundamentais e irão ocupar espaços de decisões políticas.

Qualquer ato violento e contrário a isso, deve ser enfrentado com o rigor da lei e punido criminalmente pelas autoridades!

ASSINE A PETIÇÃO E PEÇA AO MINISTRO ANDRÉ MENDONÇA A DEVIDA INVESTIGAÇÃO E RESPONSABILIZAÇÃO DO DEPUTADO NIKOLAS FERREIRA (PL-MG) PELO DISCURSO TRANSFÓBICO.

Imunidade não pode ser sinônimo de impunidade!!!!

Compartilhe, mobilize suas redes e poste vídeos chamando mais pessoas para assinar o nosso abaixo assinado. Transfobia é crime!

Para assinar e apoiar nosso pedido acesse: change.org/nikolastransfobico 

*ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais (representada por Keila Simpson e Bruna Benevides) e GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (representado por Paulo Iotti)

#TransfobiaÉCrime #nikolastransfobico

Nota Pública da ANTRA contra ataques vindos de RADFEM/TERF

Direitos e Política, Notas e Ofícios

NOTA PÚBLICA

A ANTRA vem a público tranquilizar as pessoas que estão preocupadas com campanhas transfóbicas vindas de feministas radicais nas redes sociais.

Antes de qualquer coisa, cabe afirmar que reconhecemos o feminismo radical como uma das principais ferramentas que utiliza corpos de mulheres cisgêneras a serviço do patriarcado contra os direitos trans. Um grupo de ódio antitrans que ideologicamente assume uma postura pública de caráter cissexista e tem atuado como uma associação criminosa ao mobilizar diversas ações articuladas a fim de promover ataques a pessoas trans, instituições de defesa dos direitos trans e aliados de nossa luta.

É fato notório que defendemos abertamente a regulamentação da prostituição, o que não é crime no Brasil, assim como temos atuado em diversas frentes contra o tráfico de pessoas e à exploração sexual. Tendo participado ativamente em colaboração com ações que tem resultado no desmonte de grupos que exploram trabalhadores sexuais. Tudo feito com a devida cautela, visto que esse movimento também nos coloca em situação de alto risco e nos expõe a uma série de outras violências.

Cabe aqui destacar que qualquer tentativa de afirmar que a ANTRA corrobora com exploração sexual ou qualquer tipo de crime nesse sentido, além de não encontrar qualquer respaldo na realidade, tem como objetivo tentar enfraquecer a nossa atuação, e ignora a completa ausência de envolvimento, investigação, denuncia, condenação ou responsabilização da ANTRA em delitos de qualquer natureza durante seus mais de 30 anos de atuação. E ao contrário dos fatos que apresentamos, provando materialmente que uma das representantes de grupos feministas radicais trabalha e tem sido financiada pela extrema direita trumpista[1], com vasto histórico de perseguição as pessoas trans[2], inexistem quaisquer associação ou relação entre nossa atuação e atitudes individuais praticadas por pessoas trans membras ou não de nossa rede.

Não é novidade a existência de campanhas difamatórias que tentam associar as identidades trans a criminalidade, e que tem sido adotadas como estratégia da extrema-direita e outros grupos antitrans, e fica nítido que não passam de atitudes desesperadas vindas de quem pretende seguir praticando ou incitando transfobias impunemente.. Mas que tem encontrado forte resistência organizada de nossa parte, e a defesa radical dos direitos trans que temos encampado junto a diversos aliados, incluindo ações contra pessoas autointituladas feministas radicais que estão infiltradas em partidos e movimentos populares de esquerda, mas que tem se aliado a extrema-direita para perseguir os direitos trans. E temos plena consciência do que covardes acuados são capazes. O ressentimento desses grupos se acirra no Brasil quando veem avançar conquistas que nos garantem proteção contra a injúria transfóbica ou o racismo transfóbico propriamente dito.

Ante ao exposto, nessa guerra imaterial de narrativas que pretende desviar de nossos objetivos criando distrações para avançar com ações que visam piorar a vida de pessoas trans e travestis, não  é uma decisão difícil saber qual lado deve ser defendido. De um lado grupos de ódio antitrans ligados a extrema direita e, do outro, pessoas trans reagindo a transfobia desses grupos.

O movimento trans é e sempre foi vanguarda na resistência contra as diversas violências direcionadas a nós, assim como na luta popular, em defesa dos direitos humanos e da classe trabalhadora, bem como ao confrontar o sistema e se levantar contra a transfobia, o que nos coloca inevitavelmente em maior vulnerabilidade porque o poder afirmado na cisgeneridade branca e bem posicionada socialmente, é fortalecido por diversos setores do capital.

Seguiremos firmes fortalecendo a luta trans, nos defendendo de ataques contra nossa comunidade e jamais iremos negociar com a transfobia. Esse não é um debate de dois lados ou que tenha mediação possível. A nós cabe enfrentar e denunciar, sempre.

Brasil, 08 de fevereiro de 2023.

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS

30 anos de luta de resistência


[1] https://twitter.com/AntraBrasil/status/1622738866699370496?s=20&t=tBki39S88Eq_nsArIR5QSQ

[2] https://twitter.com/transfobiapl/status/1413214821206605825?s=20&t=tBki39S88Eq_nsArIR5QSQ

ANTRA envia ofício do Ministério da Saúde sobre aumento abusivo de hormônios e pautas importantes para a saúde trans

Direitos e Política, Ofícios e Notas

A ANTRA oficiou o Ministério da saúde a respeito de questões importantes sobre a saúde trans.

Assumindo seu papel de articulação e diálogo com diversos ministérios e setores do governo, a ANTRA construiu e encaminhou ofício ao Ministério de Saúde sobre I) o aumento exponencial nos preços do medicamento Deposteron, composto injetável, produzido pela EMS, usado para reposição hormonal de testosterona, essencial para diversas pessoas trans, sejam eles homens trans, pessoas transmasculinas e não binárias, e pessoas com produção deficitária do hormônio, hipogonadismo, e outras indicações; II) a Política Nacional de Saúde integral da População LGBTQIA+ Processo Transexualizador que não foram incluídos na estrutura do Ministério da Saúde; e III) Propostas e sugestões de ações que consideramos importantes junto a pasta da saúde em relação à comunidade trans.

I) Sobre a problemática do aumento abusivo da testosterona

A alta do Deposteron afetou duramente pessoas que necessitam de reposição de testosterona, muitas das quais vivem em situação de vulnerabilidade e necessitam do medicamento para o tratamento hormonal. Em que pese exista divergência, na seara do direito do consumidor, sobre a abusividade da medida, impossível não reconhecer que o aumento causa dano irreparável ao direito constitucional à saúde.

Antes, haviam três opções de compra deste medicamento no mercado brasileiro. Há cerca de um ano, uma delas teria sido retirada do mercado (Durateston). As duas restantes seriam os compostos Nebido e o Deposteron. A Nebido, com opção com ciclo de uso de, em média, quatro em quatro meses, possui um preço em torno de R$700 por uma ampola. A opção mais acessível, com ciclos de uso de, em média, vinte em vinte dias, possuía, até agosto de 2022 o preço em torno de R$50 por três ampolas. Um custo altíssimo para essas pessoas que fazem uso contínuo da medicação.

A problemática do aumento, como se vê, é potencializada não somente pela necessidade de uso contínuo, mas também pela falta de opções alternativas financeiramente viáveis – especialmente considerando que o medicamento nem sempre é disponibilizado pelo SUS. Desde 2008, o SUS oferece hormonização gratuita para mulheres trans e, a partir de 2013, também para homens trans e pessoas transmasculinas. Mas nunca houve regulação e a efetiva dispensação da medicação ou padronização no SUS. 

Está-se, portanto, diante de consequências gravíssimas para a saúde pública, já que diversas pessoas serão obrigadas ou a interromper os seus tratamentos ou a iniciar tratamentos com compostos adquiridos no mercado paralelo, que é desregulamentado e extremamente perigoso

II) Ausência da Política Nacional de Saúde integral da População LGBTQIA+ Processo Transexualizador na estrutura do Ministério da Saúde

Lemos com bastante atenção toda a nova estrutura do ministério e ficou nítido que não constam quaisquer informações, nem menção ou localização da Política Nacional de Saúde LGBT (PNSILGBT) e nem mesmo sobre o Processo Transexualizador. Ambas políticas foram frutos de conquistas importantes para o movimento LGBTQIA+, mas enfrentaram um processo de desinvestimento e retrocessos durante a gestão bolsonaro. 

Resgatamos que até 2016, ficavam explicitados cada locus: sendo a PNSILGBT na extinta DAGEP e processo transexualizador no DAET. E sabemos que alguns órgãos foram extintos pelo governo anterior, mas não ficou nítido onde estarão sendo pautadas essas conquistas importantes que tivemos inclusive no governo Lula. E isso muito nos preocupa.

Destacamos ainda que o Processo Transexualizadror precisa passar com urgência por uma reestruturação e atualização à luz da portaria da Resolução nº 2.265 do CFM, sem se limitar a ela e da CID-11, que precisa ser ratificada por ter entrado em vigor desde 1 de janeiro de 2022, mas que ainda não foi devidamente implementada no país, causando a manutenção de um processo patologizante em relação das identidades trans e ferindo em cheio o que preconiza a OMS. 

III) Sugestões de ações que consideramos importantes junto a pasta da saúde em relação a comunidade trans.

​​1.   Ratificação em caráter de urgência o CID-11, publicada em 2018 pela Organização Mundial da Saúde, de modo a reconhecer que a transgeneridade não é uma doença; 

2.   Revisão e atualização dos procedimentos previstos no Processo transexualizador a partir do que está previsto na resolução 2265/2020 do CFM, sem se limitar a ela e com diálogo com os movimentos trans;

3.   Ampliar a rede de oferta dos procedimentos previstos no processo transexualizador do SUS com a habilitação e implementação de Ambulatórios e hospitais, com atenção especial aos estados onde não existam ou estejam inoperantes;

4.   Cumprimento imediato da decisão do STF no julgamento da ADPF 787 em 28/06/2021 sobre o acesso à saúde de pessoas trans no SUS; 

5.   Instituir protocolo de cuidado específico para pessoas que passaram pelas cirurgias de redesignação sexual, com o incentivo e destinação de recursos para o desenvolvimento de pesquisas sobre a saúde física e o impacto na saúde mental, cultura da flora bacteriana vaginal e do próprio funcionamento das neo-vaginas, assim como o de neo-falos, realizados pelos SUS nos últimos 25 anos, com atenção especial sobre quais seriam os cuidados necessários ao longo da vida desses indivíduos que não contam com qualquer tipo de suporte ou médicos qualificados para esse cuidado;

6. Geração de dados sobre a nossa comunidade no âmbito do sistema de saúde, que considere a orientação sexual e a identidade de gênero das pessoas LGBTQIA+

7. Atuar para a inclusão e garantia do acesso ao aborto legal para homens trans, pessoas transmasculinas e não binárias que tem útero e podem gestar;

8. Estabelecer diálogo com os movimentos sociais de pessoas trans politicamente mobilizados em questões referentes aos nossos direitos;

9. Destinar recursos e atenção para a realização de pesquisas e desenvolvimento de protocolos de cuidados para jovens trans, incluindo crianças e adolescentes, investindo recursos para pesquisas e programas para o mapeamento das necessidades específicas desse grupo, seus familiares e responsáveis;

10. Incluir um olhar atento a interseccionalidade de diversidade, identidade e expressão de gênero nas ações do ministério, considerando as necessidades específicas da população trans;

11. Atualizar e atuar para a efetiva implementação da Política Nacional de Saúde Integral LGBTQIA+ em todos os estados; e

12. Revisar e atualizar a cartilha sobre a Saúde da população Trans.

O Ofício pode se lido na íntegra aqui: OFÍCIO ANTRA 3/2023 – MINISTÉRIO DA SAÚDE

ANTRA lança Diagnóstico sobre a retificação de nome e gênero de travestis e demais pessoas trans no Brasil.

Direitos e Política, Pesquisas

No Brasil, apesar de ser uma realidade, a retificação registral de travestis, mulheres transexuais, homens trans, pessoas transmasculinas e não binárias, por autodeclaração é um processo pouco acessível, burocrático e caro. E é nesse cenário que a ANTRA se debruça em mais uma pesquisa, intitulada “Diagnóstico sobre o acesso à retificação de nome e gênero de travestis e demais pessoas trans no Brasil” seguindo o compromisso com a produção de dados e informações valiosas sobre o direito ao nome para as pessoas trans, lançando um documento que ao final apresenta diversas recomendações para que sejam tomadas ações a fim de enfrentar as lacunas, omissões e ou questão que foram deixadas de lado.

Tendo contado com a participação voluntária de mais de 1600 pessoas trans e não binárias de todo o país, tendo ainda participado pessoas autodeclaradas como intersexo, PCD, migrantes e Indígenas, os dados revelam de forma flagrante as omissões e questões não enfrentadas pelo Estado e seus órgãos governamentais e apontam, ainda, a necessidade de uma legislação que discipline a identidade de gênero e regulamente as demandas e necessidades das pessoas trans, assim como uma extensa revisão das normativas vigentes.

Um dos dados que mais chama atenção é o fato de que 63,57% das pessoas que participaram da pesquisa não retificaram sua documentação. Ademais, os cruzamentos entre trabalho, renda, escolaridade, localização geográfica, identidade de gênero e raça/cor têm sido fatores determinantes na dificuldade de acesso. Sobretudo ao observar o quanto o nome social ainda é altamente utilizado, embora haja entraves e uma confusão entre o que é o nome social e qual seu papel, assim como nome de registro e as dinâmicas de correção dos documentos após o processo de retificação do registro civil.

A publicação traz ainda um olhar para as normas vigentes sobre a retificação e aponta caminhos sobre a necessidade de atualizações e revisões a partir dos novos marcos onde o estado deve assegurar o acesso a esse direito. Tranzendo o perfil de quem não consegue acessar a retificação, assim como seus possíveis motivos, e jogando luz sobre as dificuldade daquelas pessoas que conseguiram retificar sua documentação, e ainda relatos sobre violências que enfrentaram nesse processo.

Há ainda uma homanagem a Roberta Close e Neon Cunha, por suas contribuições a luta das pessoas trans na busca pela cidadania através do reconhecimento de seus nomes. Além disso, traz análises de especialistas, advogades, juristas, pesquisadores, pensadores e ativistas que se debruçaram sobre a problemática em torno de uma conquista que veio pelo judiciário e que não foi incorporada como uma política pública. Contando com a participação da Dra Inês Virgínia, Victoria Dandara, Júlio Mota, Anderson Waldemar Moreira Paula e Eder Fernandes, e organização de Bruna Benevides.  Revisão textual de Issac Porto, Advogado e Conultor do Instituto Raça e Igualdade; Diagramação e Design de Raykka Rica. E contou com apoio do Fundo Positivo, Distrito Drag, Instituto Matizes, Clínica Jurídica LGBTQIA+ (UFF), Associação Brasileira de lésbicas, gays, bissexuais travestis, transexuais e intersexos (ABGLT), Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos.

Baixe agora gratuitamente em antrabrasil.org/cartilhas

CARTA DA ANTRA AO PRESIDENTE LULA E A EQUIPE DE TRANSIÇÃO DE GOVERNO

Direitos e Política, Notas e Ofícios

Caro Presidente Lula e equipe de compõe a transição de governo, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) é uma instituição que atua no BRASIL há 30 anos em defesa dos direitos LGBTQIA +, mais especificamente pelos direitos de travestis e demais pessoas trans. Somos uma rede que organiza defensores de direitos humanos e agrega mais de 120 instituições afiliadas pelo Brasil. 

Através desta vimos, em nome das pessoas trans brasileiras, reforçar nosso compromisso com sua candidatura e a alegria de termos contribuído para sua eleição, como agentes importantes que lutaram incansavelmente nas eleições de 2022. 

Já estivemos junto ao projeto de país que V Exª representava por ocasião de todas as ações que foram feitas em seu governo que sinalizavam uma mudança da forma com que o estado passava a se relacionar com nossa existência. Pudemos contribuir ativamente para a construção do Brasil Sem Homofobia representada pela saudosa Janaína Dutra, primeira advogada Travesti do Brasil com registro na OAB, estivemos em todas as conferências LGBTQIA+, compomos o Conselho Nacional de Combate a Discriminação de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – CNCD-LGBT inclusive, estivemos na presidencia desse colegiado entre 2012 e 2014. Atuamos ainda no Conselho Nacional das Mulheres e no Conselho Nacional de Saúde em período que avançamos muito em algumas pautas.

Tudo isso foi fruto de intensas articulações, atuações e parcerias estabelecidas nos governos progressistas que comandaram o Brasil nos quatorze anos até o rompimento com o golpe parlamentar de 2016. Aqui destacamos a importância do Departamento de Apoio à Gestão Estratégica e Participativa – DAGEP / Secretaria de Gestão Participativa do Ministério da Saúde, pois foi nesse espaço que pudemos sentir pela primeira vez a atuação direta da nossa população na integralidade do SUS. Também contribuímos ativamente nas políticas estabelecidas pelo ministério da educação, através da SECADI e do Conselho Nacional de Educação, e nesse sentido compomos ainda o GT da Secretaria Nacional de Segurança Pública – SENASP do Ministério da Justiça.      

Estivemos ainda, diretamente envolvidas nas grandes conquistas dos direitos LGBTQIA+ no judiciário, como a luta pelo direito à retificação de nome e gênero, a criminalização da LGBTIfobia e pelo direito à doação de sangue por pessoas LGBTQIA+. Contribuímos com a construção da resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre a restituição de nome e gênero, sobre os direitos das pessoas LGBTQIA+ em privação de liberdade e mais recentemente na resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre a inclusão de questões LGBT’s em resolução sobre o banco de dados, cadastros de eleitores e candidaturas trans. 

Nos últimos anos temos nos debruçado sobre produção de dados de violação de Direitos Humanos sobre nossa comunidade que segue invisível e que vem enfrentando um processo de maior vulnerabilização e recrudescimento da violência contra nós, seja por parte do estado (por ação ou omissão) ou pela sociedade como um todo, como um reflexo da política anti gênero, e um impacto direto da falaciosa “ideologia de gênero”  e a própria atuação publicamente LGBTIfobica do governo bolsonaro. 

Constatamos nesse período a destituição e o desinvestimento na pasta LGBTQIA+ no Ministério dos Direitos Humanos, que fora renomeado nesse governo como ministério da mulher, família e dos direitos humanos, assim como não foi feita nenhuma ação efetiva em defesa de nossos direitos. Pelo contrário, passamos os últimos 6 anos sendo humilhadas, ameaçadas  e vivendo com medo. Medo de andar na rua e até mesmo de participar da luta política devido a sensação de insegurança que se instalou no país e os altos índices de violações de direitos humanos contra  essas e esses defensores e grupos minorizados. 

Durante a pandemia não houve qualquer ação que garantisse os cuidados a nossa comunidade e a maioria de nós não teve acesso aos auxílios governamentais e políticas emergenciais, exatamente por fazermos parte do grupo mais “marginalizado” dentre a comunidade LGBTQIA+. Travestis e pessoas trans são o grupo mais violado, em especial travestis e mulheres trans negras. 

Em 2022, de acordo com o relatório mais atualizado da Trangender Europe – TGEU, pelo 14º ano consecutivo o Brasil seguiu na liderança dos assassinatos contra pessoas trans no ranking global. Dado que denuncia a ausência de ações específicas nesse sentido, já que a violência sistemática contra a população trans vem de longa data sem respostas efetivas. E não podemos mais esperar. 

Diante desse cenário gostariamos, de forma muito afetuosa, solicitar que V. Exª assuma um compromisso público com nossas vidas e nossos direitos. E não apenas como uma forma protocolar, mas efetivamente empenhado em erradicar a transfobia em todos as formas que ela admite. Ajudamos a eleger um projeto de BRASIL popular e desejamos ocupar um lugar digno na reconstrução de nossa democracia e do país que queremos viver. 

Simbolicamente, é fundamental que o senhor fale abertamente sobre a defesa de nossos direitos. Diversos líderes pelo mundo tem feito esse aceno em consonância com tratados internacionais que já avançaram nessa questão, e isso tem um impacto direto na vida de nossa comunidade. 

Materialmente é urgente que sejam destinados esforços para ações e políticas que visem enfrentar a violência motivada por orientação sexual e/ou identidade de gênero, assim como a garantia de que ninguém será deixado de lado. 

Entendemos o jogo da política e de como a nossa pauta tem sofrido diversos processos de criminalização e até mesmo sendo posta como algo que atrapalhe a luta dos trabalhadores e trabalhadoras, o que muitas vezes é usado para silenciar nossas legítimas reivindicações. Em nossa perspectiva é inaceitável que qualquer pessoa se sinta constrangida em defender abertamente nossa existência ou seja coagida a não falar sobre nós já que compomos o campo popular, democrático e nossos direitos são inegociáveis. 

Por tudo isso, além de nos colocar inteiramente à disposição, gostaríamos de sugerir algumas recomendações fundamentais na nossa perspectiva para que sejam promovidas e garantidas condições dignas para a nossa população tão excluída e que precisam de atenção, tais como, à vida, à cidadania e à humanização de nossa comunidade em todos os âmbitos e sentidos. Sendo elas:

  1. Ratificação em caráter de urgência o CID-11, publicada em 2018 pela Organização Mundial da Saúde, de modo a reconhecer que a transgeneridade não é uma doença; 
  2. Revisão e atualização dos procedimentos previstos no Processo transexualizador a partir do que está previsto na resolução 2265/2020 do CFM, sem se limitar a ela e com diálogo com os movimentos trans;
  3. Ampliar a rede de oferta dos procedimentos previstos no processo transexualixador com a habilitação e implementação de Ambulatórios e hospitais, com atenção especial aos estados onde não existam ou estejam inoperantes;
  4. Cumprimento imediato da decisão do STF no julgamento da ADPF 787 em 28/06/2021 sobre o acesso à saúde de pessoas trans no SUS; 
  5. Restabelecer a política de HIV/AIDS no status de departamento dentro do Ministério da Saúde, nos moldes do que tínhamos e amplamente melhorado, pois sofremos retrocessos nesses últimos seis anos;
  6. Incluir informações sobre à comunidade LGBTQIA+ no Censo previsto para 2030;
  7. Destinação de Recursos (materiais, pessoais e financeiros) para ações de enfrentamento à transfobia priorizando a educação em todos os níveis, saúde, segurança pública e na assistência social;
  8. Geração de dados sobre a nossa comunidade no âmbito do sistema de justiça e de direitos humanos;
  9. Revogar em caráter de urgência o decreto 10977/2022 sobre novo RG;
  10. Instituir o programa transcidadania a nível federal, a exemplo do que fez a prefeitura de São Paulo no governo do prefeito Fernando Haddad;
  11. Atuar para a inclusão e garantia da proteção específica às travestis e mulheres trans dentro das políticas de proteção a violência de gênero e mulheres;
  12. Estabelecer diálogo com os movimentos sociais de pessoas trans politicamente mobilizados em questões referentes aos nossos direitos;
  13. Atualização e modernização do disque 100, incluindo a necessidade de informações específicas sobre identidade de gênero;
  14. Promover ações específicas para a erradicação do bullying transfóbico e interromper a exclusão de pessoas trans nas escolas e universidades;
  15. Destinar vagas específicas para pessoas trans em programas de geração de emprego e/ou de renda, e incentivos fiscais para empresas que têm vínculo com o estado para contratarem pessoas trans, priorizando travestis e mulheres trans;
  16. Ratificar e atuar para a efetiva implementação da CONVENÇÃO INTERAMERICANA CONTRA TODA FORMA DE DISCRIMINAÇÃO E INTOLERÂNCIA, com atenção a garantia da autodeterminação e livre expressão de gênero das pessoas trans;
  17. Atuar para implementar todas as recomendações previstas na RPU no tocante as pessoas LGBTQIA+;
  18. Garantir a representação e participação efetiva de pessoas trans em todas as ações do governo sobre direitos humanos e enfrentamento do racismo, da violência contra a mulher e proteção contra grupos minorizados;
  19. Viabilizar a criação de um “Plano nacional de combate a LGBTIfobia e promoção da cidadania LGBTQIA+”;
  20. Atuar para proteger jovens LGBTQIA+, especialmente jovens trans, incluindo crianças e adolescentes, investindo recursos para pesquisas e programas para o mapeamento das necessidades específicas desse grupo, seus familiares e responsáveis. 

BRASIL, 10 de novembro de 2022.

Associação Nacional de travestis e Transexuais (ANTRA)

NOTA ANTRA PARA O SEGUNDO TURNO 2022

Direitos e Política, Notas e Ofícios

Posicionamento da ANTRA pela Defesa do Estado Democrático de Direito, contra a Transfobia e pelas liberdades dos nossos corpos, e a favor da vida.

Em 2022 testemunhamos fragilidades democráticas e humanitárias em razão de uma administração federal que intencionalmente tem desmantelado nesses quatro anos os ganhos conquistados nas últimas três décadas. Se antes nosso desafio era a omissão do Estado, hoje percebemos uma atuação coordenada no executivo e legislativo atentando contra os direitos da população trans. Não bastasse a transfobia vivida socialmente no país que mais mata a população trans no mundo, hoje, nos defrontamos com tentativas de inserir a transfobia no arcabouço legal.

Entendendo nosso papel frente a sociedade e que devemos lutar na defesa incansável da democracia, dos direitos humanos e da defesa das nossas liberdades individuais, inclusive defendendo a laicidade do estado, pela necessidade de fortalecimento das instituições da sociedade civil, a garantia do funcionamento das instituições do estado de forma autônoma e sem interferência, e pela proteção de pautas importantes para grupos historicamente minorizados como Travestis, mulheres Transexuais e demais pessoas LGBTQIA+, população negra, pessoas com deficiências, sobreviventes do cárcere e aquelas no sistema prisional, pessoas em situação de vulnerabilidades sociais, indígenas, quilombolas e de trabalhadores em geral, orientamos ao conjunto de afiliadas, instituições e ativistas parceiros, aliados e outras pessoas que atuam conjuntamente conosco para defender e eleger o projeto de país que mais se aproxime de nossos ideais.

Precisamos reafirmar nosso direito de decidir, nas urnas, o projeto que melhor representa as nossas lutas históricas por liberdade, autonomia, por viver sem racismo, sem machismo e sem LGBTIfobia, por soberania alimentar, energética e nacional, por agroecologia e relação justa entre nós e entre nós e a natureza.

Devemos resgatar e investir cada vez mais no desejo de mudança, incentivar a participação política e lutar pelo sonho de uma democracia forte e comprometida com o caminhar rumo a um futuro seguro e firme para o futuro do Brasil que desejamos construir.

A participação de pessoas trans, das instituições da sociedade civil politicamente mobilizadas, em movimentos populares, ativistas e outras figuras públicas, constituem a espinha dorsal da luta contra todas as forma de discriminação e violência, sendo os movimentos sociais, um dos principais pilares de nossa democracia.

Por tudo isso, a ANTRA vem a público na posição de maior e mais antiga instituição em defesa dos direitos trans do país, se manifestar sua firme decisão de não se omitir frente ao processo eleitoral para o segundo turno das eleições presidenciáveis em 2022, pois entendemos ser uma das mais importantes do período pós redemocratização, e nesse sentido incentivamos e pedimos às pessoas trans que compareçam para votar no próximo dia 30 de outubro a fim de derrotar a atual administração federal.

Temos a convicção de que não está em questão apenas uma escolha entre esta ou aquela candidatura, entre este ou aquele projeto, mas a luta por melhores condições de (re)existência em um tempo repleto de ameaças, retrocessos e ataques ao terceiro setor e aos direitos humanos e sociais. Mais que votar, nosso desafio é intervir no curso dos acontecimentos nos tempos presentes.

E, por fim,  apesar de sermos uma instituição apartidária, nós temos o dever de nos colocar ao lado de quem entende a importância de nossa luta e garante a possibilidade da defesa legítima de nossas vidas e dignidades. E, é exatamente por isso que apoiamos e indicamos o voto em Luiz Inácio Lula da Silva para presidente da república.

Brasil, 15 de outubro de 2022.

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS

CARTA DA ANTRA SOBRE AS ELEIÇÕES 2022

Direitos e Política, Notas e Ofícios

CARTA DE POSICIONAMENTO E RECOMENDAÇÕES DA ANTRA SOBRE AS ELEIÇÕES DE 2022

Em 1992, no mesmo ano em que foi eleita Kátia Tapety, a primeira travesti para um cargo político no país, um grupo de seis travestis negras se posicionaram diante das violências institucionais perpetradas pelo aparato ofensivo do Estado brasileiro. Naquele momento, 4 anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, muitos comemoravam um Brasil redemocratizado. No entanto, no que tange a população de travestis e transexuais, as arbitrariedades permaneceram. O acesso à cidadania não havia sido garantido. Jovanna Baby, Elza Lobão, Josy Silva, Beatriz Senegal, Monique du Bavieur e Claudia Pierre France foram as responsáveis pela criação da primeira organização de travestis no contexto brasileiro. Desde então, as teias do Movimento Trans se expandiram, ampliando agendas e firmando a contribuição da população de travestis e transexuais na construção democrática deste país

Em 2022, ano em que comemoramos os 30 anos do Movimento Trans, o Brasil experimenta novamente uma conjuntura de crise(s). Para além da sanitária, que impôs perdas importantes nos quadros do movimento em decorrência da Covid-19, estamos testemunhando fragilidades democráticas e humanitárias em razão de uma administração federal que intencionalmente tem desmantelado os ganhos conquistados desde nas últimas três décadas. 

Ganhos marcados por tensões, ambivalências e disputas, mas que foram se acumulando graças ao esforço dos movimentos sociais no Brasil. Dentre eles, o Movimento Trans. Se antes nosso desafio era a omissão do Estado, hoje vemos uma atuação coordenada no executivo e legislativo contra os direitos da população trans. Não bastasse a transfobia vivida socialmente no país que mais mata a população trans no mundo, hoje, nos defrontamos com tentativas de inserir a transfobia no arcabouço legal

Reafirmamos a importância de, nessas eleições, termos atenção aos partidos que atuam ou têm projetos com propostas antigênero, antitrans ou transexcludentes, e ainda aquelas que se mobilizam contra direitos LGBTQIA+. Em recente pesquisa realizada pela Escola Gêneros, foram listados pelo menos 247 projetos de lei contra direitos LGBTQIA+ que estão em tramitação no Congresso Nacional, na atual legislatura, até 31 de dezembro de 2021: sendo 12 no Senado, e 245, na Câmara dos Deputados. E ainda de acordo com o portal Agência Diadorim, em 3 anos, deputados apresentaram mais de 120 PLs anti-LGBTI+ nos estados.

Recomendamos às pessoas trans, ao se engajarem em campanhas, seja apoiando ou construindo efetivamente, que priorizem as candidaturas progressistas (seja de pessoas trans ou aliades) que tenham a pauta LGBTQIA+ como prioridade, tenham diálogo com nossa luta e mais especificamente com os movimentos trans politicamente mobilizados. Que atuem com ética, transparência e tenham trajetória ilibada na política. 

Recomendamos também às pessoas trans que desejam se engajar na disputa político-partidária a ocupar esse espaço institucional para pautar as necessidades de nossa população. Mas fiquemos atentas ao compreender que os partidos não são fins em si mesmos, são meios pelos quais podemos pensar formas de enfrentar as injustiças e omissões do estado. E é necessário afirmar que não são (e nem podem ser) a única forma desse tipo de mobilização, pois sabemos que dentre todos os partidos NENHUM prioriza nossa luta, e essa é uma questão que não abrimos mão.

Há poucas semanas atrás foi divulgado pelo Tribunal Superior Eleitoral que 37.646 pessoas trans utilizarão o nome social nas eleições de 2022. Um aumento de 373,83% comparado com o número de 4 anos atrás (7.945). Destaca-se a participação da juventude trans (21-24) com o maior contingente de pessoas trans que utilizarão o nome social, 5.440 pessoas. A soma desses trinta e sete mil com o número de pessoas trans já retificadas evidencia como nosso voto esse ano fará ainda mais diferença na reconstrução democrática que o Brasil tanto precisa. 

Diante dos desafios que estão postos, pretendemos com essa carta registrar o posicionamento da ANTRA, instituição que atua a três décadas na defesa dos direitos da população de travestis e transexuais, em relação às eleições de 2022, honrando o legado de Katia e  direcionando orientações para a sociedade civil trans e compromissos para aquelas pessoas que irão concorrer aos cargos políticos e que estão alinhadas com o projeto do Movimento Trans.

I. ORIENTAÇÕES ÀS TRAVESTIS E DEMAIS PESSOAS TRANS DA SOCIEDADE CIVIL

Votem em pessoas que defendam à democracia, o estado laico, os direitos humanos e que tenham projetos de enfrentamento de toda forma de discriminação. Não basta ser trans ou LGBTQIA+, é importante olhar para além da própria identidade, sobretudo ao alinhamento político, as pautas que defendem (priorizando os direitos econômicos, sociais e políticos com recorte interseccional) e a atuação dessas candidaturas junto ao fortalecimento das instituições da sociedade civil, no enfrentamento ao racismo alinhado a luta antirracista, ao machismo em interlocução com os feminismos interseccionais prioritariamente, e com a luta anticissexista (e antitransfobia) com a garantia da participação de pessoas e coletivos de luta trans e transfeministas.

Além disso, frisamos para que fiquemos atentas às propostas apresentadas, ao compromisso com o coletivo em diálogo e com a garantia da participação efetiva de movimentos populares, e a forma com que essas candidaturas se posicionam publicamente em relação a nossa pauta. 

Por isso, consideramos importante compartilhar algumas orientações para a população de travestis e demais pessoas trans, de modo a orientar seu exercício ao voto:

Examine quais são as incumbências de cada cargo. O que faz uma/um deputada/o estadual e federal e como as decisões tomadas por essa/e parlamentar interferem na vida da nossa população;

Procure conhecer a trajetória da pessoa que você considera votar, assim como quais agendas coletivas essa/e candidata/o construiu ao longo de seu percurso;

Estude as propostas da/o candidata/o. Como o plano de atuação dela/e pretende combater a acentuação das desigualdades que estamos vivendo no Brasil?;

Pesquise o partido da/o sua/seu candidata/o. Ao votar na/o candidata/o, não estamos votando só na pessoa, mas no partido, ajudando a eleger outros candidatas/os do mesmo partido ou coligação;

Verifique como a/o candidata/o – em caso de reeleição – e seu partido se posicionaram em votações que retrocederam a agenda democrática e econômica do Brasil nos últimos anos, o que inclui o posicionamento em votaçōes de projetos que interferem em nossas vidas;

Pesquise se a/o candidata/o já foi acusada/o de alguma prática discriminatória. Se sim, qual foi seu posicionamento diante da denúncia?;

Averigue o financiamento da campanha da/o candidata/o. Quais são os interesses políticos por trás desse financiamento?;

Pesquise o posicionamento da/o candidata/o sobre as agendas de luta antirracista, contra o machismo e o posicionamento público sobre os direitos de pessoas trans;

Pesquise o alinhamento ideológico e grupos de circulação junto as/aos candidatas/os e que podem influenciar em sua atuação;

Priorizem candidaturas de mulheres cis negras, pessoas LGBTQIA+ e outros aliados que tenham atuação e proximidade junto as coletivos LGBTQIA+ de sua localidade;

Não apoiem e/ou votem em pessoas LGBTQIA+ que estão organizadas em partidos que têm projetos contra os direitos LGBTQIA+ ou aqueles partidos com figuras públicas que disseminam a narrativa de falaciosa “ideologia de gênero” ou incluam uma agenda antigênero e antitrans;

Não apoiem ou votem em cantidaturas de fundamentalistas religiosos ou alinhados com projetos fascistas, autoritários, antidemocráticos, negacionistas, entreguistas ou aqueles que compõem bancadas que têm projetos contra a proteção do meio ambiente, contra a proteção dos povos indígenas, quilombolas e outros povos tradicionais, contra os direitos das mulheres, contra o aborto e a legalização das drogas e que violam direitos humanos de grupos minorizados. 

II. TEMOS UM PROJETO PARA O PAÍS: COMPROMISSOS PARA CANDIDATURAS ALINHADAS COM O MOVIMENTO TRANS

Do mesmo modo, também consideramos que as candidaturas progressistas, alinhadas com o Movimento Trans, possuem um papel central no fortalecimento do nosso projeto para esse país. Precisamos eleger mais candidaturas negras, cis e trans, indígenas e aquelas que tem compromisso com as pautas antirracistas, anticissexistas e em defesa dos direitos de todas as mulheres. 

Precisamos reafirmar nosso direito de decidir, nas urnas, o projeto que melhor representa as nossas lutas históricas por liberdade, autonomia, por viver sem racismo, sem machismo e sem LGBTIfobia, por soberania alimentar, energética e nacional, por agroecologia e relação justa entre nós e entre nós e a natureza. Incluindo os seguintes compromissos:

1) Sobre o posicionamento público para com a população trans:

Contratar pessoas trans durante o período de pré-campanha, campanha, equipes, gabinetes e assessorias; 

Se posicionar publicamente em suas redes sociais, debates e ações durante os períodos pré e pós campanha, contra todo e qualquer projeto/ação que se coloque contra os direitos da população trans;

Potencializar o trabalho social desenvolvido por ativistas trans do seu estado, assim como as ações nacionais coordenadas pelo Movimento Trans;

Se inteirar das agendas e pautas que o movimento trans organizado tem pautado no âmbito público;

Se comprometer e viabilizar a efetivação das propostas constantes na “Agenda Nacional TransPolítica” (Disponível em www.antrabrasil.org)

2) Sobre o fortalecimento de projetos e das organizações da população trans via recursos legislativos:

Garantir paridade na distribuição de recursos em projetos para a população LGBTIA+, de forma que mulheres lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, assim como pessoas transmasculinas e não binárias tenham acesso de forma igualitária aos mesmos recursos que os demais segmentos dessa comunidade;

Priorizar projetos e ações de instituições de defesa dos direitos trans, ou aquelas que tenham pessoas trans a frente, na destinação de recursos e emendas parlamentares para propostas e iniciativas que pretendam enfrentam os desafios para a garantia do acesso a direitos e a cidadania de travestis e demais pessoas trans;

Assumir compromisso com o fortalecimento institucional das organizações da sociedade civil transpolíticas, com a destinação de emendas parlamentares para a execução de projetos que visam estruturar a atuação do terceiro setor, priorizando aquelas que tenham travestis, mulheres transexuais, homens trans e pessoas transmasculinas e não binárias à frente;

Desenvolver atividades formativas em parceria com as organizações trans de sua localidade (estado e/o município) e a nível federal quando aplicável, com o objetivo de fornecer as ferramentas e aprendizagens necessárias para o processo burocrático que envolve a destinação de recursos via emendas parlamentares.

3) Sobre a criação de espaços de participação político-institucional:

Convidar ativistas LGBTQIA+, prioritariamente mulheres LBT e pessoas trans, para a construção conjunta de projetos de lei e demais instrumentos legislativos que impactam essa população, sejam as propostas específicas ou universais;

Se comprometer com a criação de “Frentes Parlamentares em defesa da cidadania LGBTIA+” para que sirvam como espaço de formação político-institucional, de formulação de propostas de políticas públicas e mobilização/incidência diante de projetos ou decisões que são do interesse da população LGBTIA+;

Realizar audiências públicas sobre projetos de lei ou decisões que são do interesse da população LGBTIA+, sobretudo em casos de ações que buscam retroceder a nossa agenda de direitos, priorizando a luta de pessoas trans e a efetiva participação dessas pessoas junto às ações;

Fortalecer a implementação e/ou o trabalho dos Conselhos LGBTQIA+ (federal/estadual/municipal), de modo que as/os ativistas possam exercer o direito à participação política;

4) Sobre ações de advocacy/articulação frente à projetos/ações transfóbicos:

Articular internamente na casa legislativa para que projetos de lei transfóbicos não sejam aprovados a fim de coibir as tentativas de institucionalização da transfobia;

Denunciar ações do executivo que ferem a dignidade das pessoas trans, assim como articular a suspensão da tal medida através dos meios cabíveis;

Incentivar a redação de pareceres jurídicos que atestem os problemas jurídicos dos projetos/ações transfóbicos;

Informar o Movimento LGBTQIA+ sobre esses projetos/ações transfóbicos, assim como trabalhar conjuntamente com o Movimento de modo a construir uma ação coordenada de mobilização;

Pressionar para que o posicionamento contrário a esses projetos/ações se torne um posicionamento do partido, de modo que outras/os parlamentares da bancada também assumam responsabilidade pela denúncia dessas arbitrariedades;

Compartilhar o trabalho desenvolvido contra esses projetos/ações transfóbicos com parlamentares de outros estados/municípios, caso o projeto/ação tenha sido replicado;

5) Sobre as candidaturas trans no âmbito dos partidos políticos: 

Fortalecer as candidaturas de travestis e demais pessoas trans no âmbito dos partidos, assegurando a garantia de que travestis e mulheres transexuais terão acesso a cota feminina e que os recursos sejam destinados de modo a incentivar e garantir a efetiva participação das candidaturas trans na disputa eleitoral;

Realizar, em parceira com os movimentos sociais, cursos de formação política que incluam as pautas do movimento trans para filiados e futuros quadros, incluindo pessoas cis e trans;

Garantir estrutura de pessoal, material e recursos financeiros a fim de viabilizar a participação de travestis e demais pessoas trans que tenham interesse na atuação político-partidária;

Organizar medidas e ações que visem erradicar a violência institucional dentro dos partidos, incluindo a proibição de filiados com ideais trans-excludentes, a fim de que seja criado um ambiente seguro e comprometido com as pessoas trans;

Garantir a seguranças das candidaturas trans no período pré-campanha, na campanha propriamente dita e após o período eleitoral, com atenção especial às pessoas trans que foram eleitas;

Garantir a participação de travestis e mulheres transexuais na cota para mulheres nas eleições;

Garantir a proteção à travestis e mulheres transexuais nos termos da lei de proteção às mulheres vítimas de violência política de gênero; e

Garantir a participação de travestis e demais pessoas trans em toda a estrutura do partido, incluindo os espaços de decisões, diretórios estaduais e nacionais, para além daqueles destinados às pessoas LGBTIA+.

Por fim, frente ao número expressivo de vitórias eleitorais de parlamentares trans nas últimas eleições, fundamentadas pelo projeto político gestado no interior dos Encontros Nacionais de Travestis e Transexuais, impõe-se o reconhecimento do Movimento Trans como um contundente agente coletivo do campo progressista brasileiro. Nossa ausência em processos políticos, eleitorais e institucionais deve ser encarada como um problema que fragiliza a democracia brasileira.

Precisamos resgatar e investir cada vez mais no desejo de mudança, incentivar a participação política e lutar pelo sonho de uma democracia forte e comprometida com o caminhar rumo a um futuro seguro e firme para o futuro do Brasil que desejamos construir. E a participação de pessoas trans, das instituições da sociedade civil politicamente mobilizadas, em movimentos populares, ativistas e outras figuras públicas, constituem a espinha dorsal da luta contra toda forma de discriminação e violência, sendo os movimentos sociais, um dos principais pilares de nossa democracia. 

Sem travestis e pessoas trans não existe democracia!

Brasil em 25 de Agosto de 2022. 

Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA)

Baixe a carta em PDF abaixo

ANTRA entrega CARTA sobre população Trans Negra à representante da CIDH

Direitos e Política
Keila Simpson, PresidenTRA da ANTRA entrega Carta a Sra Margarette Macaulay da CIDH – Crédito: Comunicação ABONG

Durante o Encontro Nacional da ANTRA para celebrar os 30 anos de Luta Trans no Brasil, realizado de 1 a 4 de agosto de 2022 em Niterói/RJ, recebemos a presença da Relatora sobre pessoas Afrodescendentes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), Sra Margarette Macaulay que pode ouvir sobre a “Situação das pessoas AFROTRANSCENDENTES no Brasil”.

A mesa contou com a participação da Presidenta da ANTRA Keila Simpson, Gab Van homem trans preto representante da Liga transmasculina Joao W Nery, a co-Vereadora de SP Carolina Iara, além da Prof Dra Megg Rayara Professora adjunta na Universidade Federal do Paraná; Coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) da Universidade Federal do Paraná; Coordenadora dos Consórcios de NEABs da Região Sul, com mediação de Mariah Rafaela, Oficial da Race and Equality no Brasil.

Na ocasião, ainda foi entregue a “Carta aberta sobre a situação da população de travestis e transexuais negra brasileira” à Sra. Margarette May Macaulay.

LEIA A CARTA DA ÍNTEGRA:

CARTA ABERTA SOBRE A SITUAÇÃO DA POPULAÇÃO DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS À SRA. MARGARETTE MAY MACAULAY – RELATORA SOBRE PESSOAS AFRODESCENTES DA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Ser uma transexual é sofrer todos os estigmas possíveis em um país considerado o país da diversidade, do acolhimento e que não tem políticas efetivas para sua população. Imagine ser uma negra e ainda trans? É saber que eu preciso lutar duplamente para conseguir políticas efetivas. Paulett Furacão, Salvador, 2018.

Em 44 anos de atuação sociopolítica em prol dos direitos da população negra deste país, a contribuição do Movimento Social de Negras e Negros é inquestionável. Sua crítica ao processo democrático – “enquanto houver racismo, não haverá democracia” – expõe que um país como o Brasil, construído a partir do racismo estrutural, não pode compreender a luta antirracista de forma secundária. Uma vez que mais da metade da população se autodeclara como negra, impõe-se o fundamento racial como uma lente que nos ajuda a compreender a realidade concreta do nosso território. 

De todo modo, também é visível como precisamos avançar nas discussões/ações pautadas desde uma perspectiva interseccional. Logo, que imbrica raça, (identidade de) gênero e orientação sexual. Se outrora as ativistas negras cisgêneras viram-se incumbidas de “feminizar” a agenda do Movimento Negro, hoje, à luz de experiências como as das parlamentares travestis negras, propomos “travestilizar” essa agenda. 

Nesse sentido, o nosso esforço tem sido o de visibilizar os corpos, as identidades e subjetividades de travestis, mulheres transexuais, homens trans, pessoas transmasculinas e não binárias no interior da luta política de pessoas negras. Acreditamos que o reconhecimento dessa multiplicidade que compõe a população negra brasileira é não apenas agregadora, como também avança a luta antirracista no Brasil.

Devemos problematizar discursos acerca do genocídio da juventude negra no Brasil que apenas discorrem sobre o gênero masculino, deixando de aprofundar a análise e levar em conta a orientação sexual e/ou identidade de gênero. Acreditamos que as múltiplas violências que atingem a população negra não são motivadas única e exclusivamente pelo racismo. É preciso considerar outros marcadores que também são determinantes na escolha das vítimas e na forma com que os crimes são cometidos.

Quando denunciamos a violência racista no Brasil, casos como o da polícia da cidade de São Paulo (São Paulo) contra a travesti Verônica Bolina em 2015 e os assassinatos de três travestis negras – uma teve seu corpo carbonizado – em julho de 2021 em Recife (Pernambuco) não podem ser escamoteados. Afinal, a sobreposição do preconceito potencializa o processo de exclusão e aumenta consideravelmente a exposição à violências, simbólicas e físicas, como as que atingem travestis e mulheres transexuais negras, vítimas da transfobia e do racismo.

De acordo com os dossiês de assassinatos de pessoas trans publicados pela ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais entre 2017 e 2021, confirmam que o Brasil lidera o ranking internacional de assassinatos de travestis e transexuais no mundo.

A cada 48 horas uma travesti ou mulher transexual é assassinada no Brasil, sendo que cerca de 70% das vítimas têm entre 16 e 29 anos, o que contribui para que a expectativa de vida da população trans no Brasil seja a menor do mundo, em torno de apenas 35 anos, sendo as pessoas negras aquelas que enfrentam os piores processos de precarização de suas vidas e tem menor escolaridade, assim como menor acesso à saúde, incluindo a saúde mental, sexual e reprodutiva. 

Também são as pessoas trans negras que sofrem, de forma recorrente, maior dificuldade de acesso a políticas públicas e são maioria que não tem acesso a retificação de nome e gênero nos termos da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o tema. No caso das travestis e mulheres trans negras, sabemos que são a maioria daquelas em situação de rua, na prostituição, vivendo com HIV e no sistema prisional. Quando consideramos o pertencimento racial da população de travestis e transexuais, essa expectativa de vida média cai para cerca de 28 anos, justamente porque 80%, das vítimas de transfeminícidio no Brasil são pretas ou pardas, ratificando o triste quadro de extermínio da juventude negra no Brasil. 

Outro dado importante presente nesses assassinatos é que, em geral, se trata de um ato ritualizado: “85% dos casos os assassinatos foram apresentados com requintes de crueldade, como uso excessivo de violência, esquartejamentos, afogamentos e outras formas brutais de violência. O que denota o ódio presente nos casos”.

A cisgeneridade normativa não pode ser legitimada como um elemento natural da negritude no Brasil. Em razão disso, travestis, mulheres transexuais, homens trans, pessoas transmasculinas e não binárias negras/os/es afirmam a potencialidade da construção de uma frente de luta antirracista também protagonizada pelos nossos corpos, identidades e subjetividades.  

Algumas propostas

Discutir racismo implica considerar o fato de que sua forma de operação é bastante diversificada, pois envolve questões de gênero, identidade de gênero e orientação sexual, dentre outros. Assim, a naturalização de identidades binárias, rígidas, cristalizadas, surge como um obstáculo a mais no caminho de pessoas negras que escapam a essas normalizações e normatizações. É urgente incuir um olhar que considere a existência de corpos trans negros e negras, com atenção ao enfrentamento do cissexismo, das narrativas antitrans e do transfeminicídio como pauta prioritária na luta da população afrodescendente.

Algumas ações podem contribuir para alterar o quadro de invisibilização a respeito da existência e experiências de travestis e transexuais negras:

1.   Instituir uma política que garanta o atendimento e à proteção das travestis e mulheres trans negras vítimas de violência doméstica, assegurando atendimento em todas as políticas de enfrentamento a violência de gênero e de proteção à mulher;

2.   Estimular a participação de travestis e transexuais a fazer uso das políticas afirmativas para a população negra, como por exemplo, concorrer por cotas raciais em concursos públicos e vestibular;

3.   Instituir um programa de cuidado específico para travestis e demais pessoas trans negras nas questões de saúde mental a fim de mitigar os impactos de transfobia e do racismo para além das questões de transição e sob um viés não patologizante e que considere a autonomia dessas pessoas, incluindo um olhar atento as pessoas trans negras migrantes, vivendo com HIV, em território de favelas e das periferias, pessoas com deficiência, indígenas, quilombolas e povos tradicionais;

4.  Assegurar atenção e cuidados em saúde, incluindo a física, sexual e reprodutiva, considerando as especificidades corporais e necessidades de travestis e demais pessoas trans negras, com foco naquelas que vivem com HIV, utilizam silicone industrial em seus corpos, fazem hormonização e uso acima da média de álcool e outras drogas;

5.   Promover campanhas publicitárias de promoção da cidadania, valorização e apoio às travestis e transexuais negras;

6.   Incluir as pautas de travestis e transexuais negras em todas as propostas de ações e políticas de enfrentamento ao racismo;

7.    Em datas comemorativas, como o Dia Nacional da Consciência Negra, Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha destacar a participação de personalidades travestis e transexuais na luta contra o racismo;

8.  Criar mecanismos de proteção de travestis e demais pessoas trans negras defensoras de direitos humanos, considerando o risco aumentado pelo cruzamento entre o racismo e a transfobia, além da sua atuação como DDH;

9.  Criar protocolos de cuidados e atendimento das necessidades de crianças e adolescentes trans negres, incluindo seus familiares, no que tange a garantia do acesso a transição social e cuidados em saúde, considerando as recomendações de especialistas no assunto;

10.  Instituir um programa social específico para travestis e demais pessoas trans em processo de envelhecimento, que assegure e inclua: o acesso a benefícios sociais do governo, à aposentadoria, ao abrigamento em espaços específicos para pessoas trans, e aos cuidados da pessoa idosa.

Nessas e em outras ações seria preciso adotar posturas interseccionais não apenas no campo teórico, mas no campo da militância, promovendo a aproximação de pautas, consideradas distintas, porém que incidem sobre uma grande parcela da comunidade negra. Dessa maneira seria possível estabelecer diálogos de valorização e proteção.

Assim, aos poucos, com esforços de todas as pessoas e de toda a sociedade diante das múltiplas situações de violência dirigidas às travestis e mulheres transexuais negras começaria a tomar forma um abraço aconchegante onde poderíamos pedir guarida, e poderíamos de fato, nos sentirmos apoiadas e protegidas.

Niterói, 2 de agosto de 2022.

KEILA SIMPSON – Presidenta da ANTRA

BRUNA BENEVIDES – Secretária de Articulação Política da ANTRA e autora da pesquisa anual sobre violência contra pessoas trans brasileiras. Pesquisadora sobre pessoas trans nas eleições e violência política de gênero. 

MEGG RAYARA RAYARA GOMES DE OLIVEIRA – Professora adjunta na Universidade Federal do Paraná; Professora credenciada no Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade Federal do Paraná; Coordenadora da Comissão de Políticas Afirmativas no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná; Coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) da Universidade Federal do Paraná; Coordenadora dos Consórcios de NEABs da Região Sul.

MARIA CLARA ARAÚJO DOS PASSOS – Mestranda em Educação na Universidade de São Paulo, assessora parlamentar na Mandata Quilombo da Dep Erica Malunguinho. 

A carta foi Traduzida para o inglês por Isaac Porto, Advogado e Coordenador do programa LGBTQIA+ do Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos

Bibliografia para consulta

BENEVIDES, Bruna G. “Dossiê dos assassinatos e violências contra pessoas trans brasileiras em 2021”.

Carneiro, Sueli.  Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, 49, 49-58, 2003. 

Coalizão Negra por Direitos. Enquanto houver racismo, não haverá democracia. Disponível em: < https://comracismonaohademocracia.org.br>

Nascimento, Leticia Carolina Pereira do. Travestis negras en Brasil: vidas precarias más allá de la pandemia. De despojos y luchas por la vida, 165.

Passos, Maria Clara Araújo dos; Garcia, Carla Cristina. Entre inexistências e visibilidades: A agência sociopolítica de travestis e mulheres trans negras no Brasil (1979-2020). Revista Brasileira de Estudos da Homocultura 4, no. 14, 32-53, 2021.

Oliveira, Megg Rayara Gomes de. Por que você não me abraça: Reflexões a respeito da invisibilização de travestis e mulheres transexuaisno movimento social de negras e negros. Revista SUR n.28, v.15 n.28, p. 67 – 179, 2018

NOTA PÚBLICA DA ANTRA sobre o “congresso brasileiro pelo direito de ser transfóbico”

Direitos e Política, Notas e Ofícios, Saúde

A ANTRA vem a público informar que tomou conhecimento sobre a organização de um evento[1] onde os organizadores se utilizam de malabarismos retóricos para mascarar a transfobia do mesmo, mobilizado por pessoas desonestas sobre suas reais intenções e que utilizam a transgeneridade para confundir a sociedade, e fazer parecer que se trata de alguma mobilização em prol dos nossos direitos quando na verdade são pessoas transfóbicas que pretendem disseminar mitos sem base científica e perpetuar estigmas sobre pessoas trans.

Em uma olhada rápida, engana-se quem pensa que o evento seria pró-trans. Nitidamente os debates propostos e temas como “epidemia trans” (mito criado que consiste em tentar afirmar que a transgeneridade seria transmitida de uma pessoa para outra ou capaz de incentivar pessoas a “virarem trans”), a realização de cirurgias de “redesignação sexual em crianças” (que não são realizadas em menores de 18 anos no Brasil) e a associação entre transgeneridade e abuso sexual, já denunciam o viés transfóbico do congresso.

Além da própria constituição de um debate que inclui um viés negacionista e anticientífico com a inclusão de teorias conspiracionistas frente as informações, dados e pesquisas que tem sido publicadas nos últimos anos e que atestam a importância do acesso aos cuidados em saúde para pessoas trans e que sugiram abordagens terapêuticas não patologizantes. Especialmente quando a própria Organização Mundial da Saúde (OMS), na sua mais recente versão do CID em sua 11ª revisão, retirou a transgeneridade do código de doenças[2] e atestou tratar-se de uma condição humana.

Assim como o Conselho Federal da Psicologia (CFP), em sua resolução nº 01/2018[3] recomenda os cuidados que considerem o acolhimento e não discriminação, assim como são proibidas no país as terapias de reorientação sexual e/ou de gênero ou qualquer tipo de cuidado que considere a transgeneridade como uma doença. Esse tipo de iniciativa viola ainda todos tratados sobre os direitos de crianças e adolescentes, e as recomendações de organizações que pesquisam o tema.

Além disso, é flagrante que na construção do evento haja a inclusão e o uso de informações inverídicas, e que pretendem negar o acesso aos cuidados que considerem o desejo expresso das pessoas trans e suas autonomias. Assim como também há o uso de termos ultrapassados e informações já superadas por estudos contundentes sobre a qualidade de vida de jovens e crianças trans que encontram um ambiente acolhedor e favorável a transição social, e os efeitos positivos que o acesso as modificações corporais traz para a população trans.

Ao observar mais detalhadamente os nomes dos palestrantes, além de muitos já serem conhecidos por abordagens transfóbicas e que lançam mão do transpanic, identificamos a completa ausência de pessoas trans compondo ou participando, especialmente pesquisadores e profissionais trans da área de saúde ou especialistas que pesquisam o tema. Assim como não há a participação de qualquer instituição de referência na luta pelos direitos trans na organização ou dentre os apoios. E o que vemos são diversas instituições que sequer tem qualquer acumulo, seja na teoria e pesquisa, no atendimento ou mesmo na prática sobre as necessidades e o atendimento humanizado das pessoas trans.

Notamos com muita preocupação que o congresso conta ainda com a participação do responsável pelo ambulatório trans que atende crianças e jovens trans em SP. Já conhecido por suas posições altamente retrógradas e patologizantes, algumas delas apontadas aqui: https://antrabrasil.org/2019/04/07/nota-publica-repudio-entrevista-dr-alexandre-saadeh-ao-portal-universa/amp/ e aqui https://antrabrasil.org/2019/04/24/o-mito-da-disforia-de-inicio-rapido-e-de-contagio-social-mencionada-por-alexandre-saadeh/amp/, assim como também consta a participação da pessoa responsável por tentar difundir a ideia de que exista uma epidemia trans (SIC) em curso no país, e que teve uma palestra cancelada pelo reconhecimento do absurdo que esse tema sugere.

Em nossa perspectiva, esse congresso não passa de uma tentativa de organizar uma política antitrans, e que deliberadamente ignora a completa falta de políticas públicas que garantam esse acesso a jovens trans no país, a urgência da luta pelo fortalecimento da política no Sistema Único de Saúde (SUS) como o processo transexualizador que vem sendo sucateado ou a quantidade insuficiente de ambulatórios e hospitais de referência nos cuidados específicos da saúde trans. Dessa forma, tentando confundir a população com a difusão de ideias que incentivam e promovem diversas violações de direitos e levam ao sofrimento físico e mental de pessoas trans, ao negar os efeitos positivos que o acesso aos cuidados em saúde propiciam, incluso o bloqueio hormonal, e o quanto o acesso a esse tipo de cuidado já se mostrou eficaz e seguro sob diversas óticas e seus resultados.

Precisamos estar atentas a quem está organizando e de onde vem o financiamento para esse tipo de evento que conta com apoio de instituições que tentam se isentar, mas que estão contribuído para a institucionalização da transfobia, sobretudo nos cuidados em saúde.

Estamos mobilizando ações e diversas frentes de mobilização com vários grupos para ver que tipo de providências podem ser tomadas diante de mais essa tentativa de disseminar fakenews e teorias fundadas na transfobia e no ódio a liberdade e diversidade de gênero. E solicitamos as pessoas que parem de compartilhar qualquer tipo de informação, link, print ou mídia que levem a visibilidade para ações transfóbicas, e que se possível encaminhem para instituições e órgãos que possam tomar providências, exigindo respostas e ações concretas.

Recomendamos ainda o imediato cancelamento desse evento e que a disseminação de seus ideais sejam interrompidas sob o risco de danos gravíssimos para as pessoas trans.

Brasil, 13 de maio de 2022.

Associação Nacional de Travestis e Transexuais

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[1] Optamos por omitir nomes e informações que contribuam para a disseminação do evento ou de seus organizadores visto que a existência de algo tão vil já é de conhecimento público de grande parte das pessoas que lutam pelos direitos trans.

[2] https://brasil.un.org/pt-br/83343-oms-retira-transexualidade-da-lista-de-doencas-mentais

[3] https://site.cfp.org.br/tag/resolucao-01-2018/#:~:text=A%20Resolu%C3%A7%C3%A3o%20CFP%20n%C2%BA%2001,desenvolvimento%20de%20culturas%20institucionais%20discriminat%C3%B3rias.

Nota Pública da ANTRA em apoio a Vereadora Lins Robalo

Direitos e Política, Notas e Ofícios
Vereadora Lins Robalo (PT)

A ANTRA vem público repudiar e denunciar as diversas formas de transfobia e violências institucionais no exercício do seu cargo, sofridos pela vereadora Lins Robalo (PT), que compõe a câmara de vereadores da cidade de São Borja/RS.

Cabe ressaltar que ela é a primeira vereadora travesti eleita na cidade e que em tempos onde temos observado um aumento da violência contra a população trans, a violência política contra nossas representantes no exercício da atuação legislativa também tem se intensificado, especialmente contra mulheres trans e travestis negras, com uma nítida tentativa de impedir a sua atuação. O que denuncia nitidamente a transfobia estrutural e racista que acompanha a sociedade e acaba por permitir que a própria casa legislativa, para qual a vereadora Lins foi eleita democraticamente, tem sido o espaço responsável por reproduzir violência, seja ela institucional, simbólicas e psicológicas, diretas e indiretas contra a nossa querida vereadora.

Em recente pesquisa realizada sobre a violência política contra parlamentares trans, 80% das pessoas trans eleitas relataram não se sentirem seguras para o exercício do seu cargo e temos visto diversos casos ganharem a esfera pública sem que o estado esteja atuando para a defesa de nossas representações.

Diante desse mais esse caso contra uma vereadora trans, destacamos que o Brasil é um dos países que mais viola direitos e assassina defensores de direitos de humanos do mundo. E ao observar o cenário complexo em que pessoas trans são colocadas pela omissão do estado, viver em plenitude se constitui como um grande desafio diante da falta de ações para proteger a vida dessas pessoas, assim como a devida atuação de defensores de direitos humanos e na mesma medida garantir do exercício do cargo parlamentar, sem ser submetida a CIStemática violência que são destinadas as pessoas trans, incluindo violências motivadas por questões de gênero e raça, no caso específico dos ataques e violência política contra parlamentares trans negras.

A ANTRA tem sido responsável por monitorar e acompanhar a atuação de candidaturas e parlamentares trans eleitas. Incidindo junto a órgãos nacionais e internacionais, em parceria com outras instituições de defesa dos direitos humanos, com atenção especial à violência política. Onde temos participado de reuniões e audiência com a Comissão Interamericana de direitos humanos (CIDH), Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal, Tribunal Superior Eleitoral, Ministério público e outros, a fim de denunciar e enfrentar os desafios para o enfrentamento da violência política destinada as vereadoras trans.

Fica aqui nossa solidariedade a Vereadora Lins Robalo, travesti negra de esquerda, e a garantia que seguiremos atentas na defesa de sua atuação, pela garantia de sua voz dentro da câmara de são Borja. Você nos representa, e seguiremos orgulhosas de sua representatividade e compromisso com a democracia, com o enfrentamento das injustiças e na defesa do estado laico.

Força Lins e demais companheiras que compõe seu gabinete!

Não seremos interrompidas!!!

Brasil, 25 de maio de 2021.

Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA)