O Festival Transmasculinizando surge fruto de uma reunião entre pessoas trans, no mesmo dia em que tivemos a notícia da partida do Demetrio. Onde um grupo de pessoas trans se formou e foi feita uma reunião online no dia 17 de maio, para discutir o suicídio entre a população Trans, e como desdobramento foi tirada a realização de um evento focado na visibilidade de homens trans e transmasculines, visto que foi consenso a urgência para a rearticulação e reorganização política de homens trans no cenário político nacional. Esta foi uma deliberação das 30 pessoas que participaram da reunião, onde haviam maioria de homens trans, negros e uma grande representação do nordeste.
E o uso da imagem do Demétrio foi sugerido e acatado por todas as pessoas, e passou a ser capa do grupo Politicas Trans BR no mesmo dia, visto que sua imagem representa a urgência desta discussão e sobre como homens trans, sua maioria negros e jovens, estão sendo violados pelo estado. Firmou-se um compromisso de que sua morte não seria esquecida por nós e que não iríamos esperar que outres fossem suicidados, visto que o suicídio de homens trans vem crescendo a cada ano.
No mesmo instante, colocamos a ANTRA a disposição para sermos facilitadoras deste processo, ajudar na organização e divulgação, e foi marcada uma outra reunião, a fim de que fosse construído um evento nos moldes do Travestilizando, realizado anteriormente pela ANTRA. E iniciamos um diálogo com pessoas transmasculinas que estavam protagonistas desta atividade e fomos pensando temas a partir do acumulo político que cada um tem nos assuntos propostos. O ponto principal do evento seria então um posicionamento ético-político, aliado a expertise de cada ume sobre pautas caras aos homens trans e pessoas Transmasculinas a fim de enfrentar as questões que impactam suas vidas. O objetivo seria uma exposição por parte de especialistas a fim de que pudéssemos contrapor pesquisas, desfazer mitos e tabus sobre os corpos trans.
Há pouco mais de uma semana para o evento, ainda tínhamos muitas pessoas que não haviam respondido o convite e outras que declinaram por questões pessoais ou por estarem construindo um outro evento. Ficando uma lacuna regional e de raça para ser preenchida, sem que abríssemos mão de outros marcadores que também fazem parte da diversidade de homens trans.
Assim, conseguimos agregar 15 homens trans com notória atuação em suas áreas, sendo negros e pardos, indígena, pais e avôs, moradores do interior do país e de todas as regiões, oriundos da periferia, desempregados, ativistas, artistas, pesquisadores, além de blogueiros e atores com grande alcance na mídia para visibilizar aqueles que o compõe o festival e alcançar o objetivo de trazer as pessoas que seguem estes convidados para conhecer os demais que compõe a lista. Além disso, aproximamos fundadores do movimento a novas lideranças e anônimos e famosos, em uma grande teia articulada para ocupar a rede durante 8h seguidas.
A participação da ANTRA se limitou a oferecer a experiência com a organização deste tipo de evento, o alcance nacional com redes de parceiras e afiliadas, para fortalecer as lutas trans. Para que não fossem invisibilizados ou preteridos ao realizar as lives em nossos perfis da redes social, e a fim de que a luta se convertesse em uma grande rede ampla para todes. Esta foi a estratégia pensada, para ampliar o alcance de cada ativista e potencializar as falas para além dos seguidores habituais de cada um. As lives acontecem nos perfis pessoais de cada expositor, que tem a liberdade de usar seu espaço e tempo como achar melhor.
Não temos nenhuma responsabilidade ou ingerência sobre o conteúdo, forma de uso do espaço ou o posicionamento de cada participante. E acreditamos que todes os participantes tem extrema relevância e representam apenas uma parte do que são os corpos transmasculines dissidentes. Tivemos dificuldade em incluir mais homens trans negros na programação e muito disso parte pelo racismo, pela invisibilidade e falta de acesso aos espaços de construção política, assim como a própria invisibilidade de homens trans negros no movimento LGBTI+ como um todo.
Diante disto, foi gerada uma onda de apontamentos sobre a pouca representatividade de homens trans negros, além do uso da imagem do Demétrio ter sido apontado como racista por se tratar de um homem trans negro e de como a dor da família seria potencializada ao ver sua foto exposta daquela forma. E tendo sido procuradas por diversas pessoas, tivemos uma reunião com familiares e amigues próximos ao Demétrio, a fim de reconhecer nossa atitude racista ao fazer uso de uma imagem publicada na internet e de propriedade da fotógrafa, além da pela falta de sensibilidade ao não pedir autorização para o uso da mesma aos familiares. E discutir formas de reparar o ocorrido, além de rever a prática racista do uso de imagens de pessoas pretas mortas amplamente utilizadas por todos nós.
Além disso, nos comprometemos a seguir apoiando a luta de homens trans, especialmente negros, fortalecer as redes de apoio e atenção as pessoas pretas, assim como a inclusão e fortalecimento destas pessoas nos espaços de construção política. E intensificar a luta antirracista em nossos espaços e na formulação de políticas que impactem a vida de todas as pessoas trans. Assim como a manutenção do festival como marcação de sua importância e dos homens trans que estão participando, e já tendo sido pensadas estratégias conjuntas para reparar e incluir mais homens trans negros na programação.
Pedimos desculpas especialmente a Sra Ivoni, pela dor que lhe causamos quando optamos por homenagear alguém que para nós representa muito, e por termos ignorado o sentimento de mãe, familiares e amigues que nos acolheram, foram atenciosos e nos ajudaram ver o erro cometido em uma reunião mediada pela Maria Clara Araújo, a quem somos gratas pela brilhante e sensível atuação. A pedido da família a foto do Demétrio será retirada de nossas redes, e fazemos um apelo a todes para que repensemos o uso das imagens de pessoas que se foram em nossa atuação.
A nossa luta não inicia neste evento e segue mais fortalecida para além dele com a aprendizado que pudemos construir coletivamente neste momento. Especialmente ao sinalizar novas formas de organização e a importância da atuação em rede de todas as pessoas que compõe nossa frente ampla de luta, para que o enfrentamento conjunto do racismo e da transfobia tragam êxitos a toda nossa população. Não acreditamos que a luta trans pertença a rede A ou instituição B, ou que ela se encerre nesta atividade. João Nery, Demetrio Campos, Thadeu Nascimento, Marielle, Ares e Saturno, Aghata, Miguel e outres, são faróis que representam nossa luta e a importância de seguirmos juntes.
Reafirmamos nosso compromisso enquanto instituição de luta pelo direito das pessoas trans, especialmente negras, que compõem nossa diretoria e estão atentas aos desafios que enfrentamos, e nos colocamos a disposição para agregar ainda mais a nossa atuação. Contem sempre com nosso apoio para visibilizar ações e iniciativas em prol de nossa coletividade e agradecemos todas as pessoas que nos procuraram por entender a importância de nosso trabalho e pretendem colaborar com ele.
Esta Nota foi lida e aprovada pela família do Demétrio.
Brasil, 05 de junho de 2020.
Associação Nacional de Travestis e Transexuais