A ANTRA vem a público informar que tomou conhecimento sobre a organização de um evento[1] onde os organizadores se utilizam de malabarismos retóricos para mascarar a transfobia do mesmo, mobilizado por pessoas desonestas sobre suas reais intenções e que utilizam a transgeneridade para confundir a sociedade, e fazer parecer que se trata de alguma mobilização em prol dos nossos direitos quando na verdade são pessoas transfóbicas que pretendem disseminar mitos sem base científica e perpetuar estigmas sobre pessoas trans.
Em uma olhada rápida, engana-se quem pensa que o evento seria pró-trans. Nitidamente os debates propostos e temas como “epidemia trans” (mito criado que consiste em tentar afirmar que a transgeneridade seria transmitida de uma pessoa para outra ou capaz de incentivar pessoas a “virarem trans”), a realização de cirurgias de “redesignação sexual em crianças” (que não são realizadas em menores de 18 anos no Brasil) e a associação entre transgeneridade e abuso sexual, já denunciam o viés transfóbico do congresso.
Além da própria constituição de um debate que inclui um viés negacionista e anticientífico com a inclusão de teorias conspiracionistas frente as informações, dados e pesquisas que tem sido publicadas nos últimos anos e que atestam a importância do acesso aos cuidados em saúde para pessoas trans e que sugiram abordagens terapêuticas não patologizantes. Especialmente quando a própria Organização Mundial da Saúde (OMS), na sua mais recente versão do CID em sua 11ª revisão, retirou a transgeneridade do código de doenças[2] e atestou tratar-se de uma condição humana.
Assim como o Conselho Federal da Psicologia (CFP), em sua resolução nº 01/2018[3] recomenda os cuidados que considerem o acolhimento e não discriminação, assim como são proibidas no país as terapias de reorientação sexual e/ou de gênero ou qualquer tipo de cuidado que considere a transgeneridade como uma doença. Esse tipo de iniciativa viola ainda todos tratados sobre os direitos de crianças e adolescentes, e as recomendações de organizações que pesquisam o tema.
Além disso, é flagrante que na construção do evento haja a inclusão e o uso de informações inverídicas, e que pretendem negar o acesso aos cuidados que considerem o desejo expresso das pessoas trans e suas autonomias. Assim como também há o uso de termos ultrapassados e informações já superadas por estudos contundentes sobre a qualidade de vida de jovens e crianças trans que encontram um ambiente acolhedor e favorável a transição social, e os efeitos positivos que o acesso as modificações corporais traz para a população trans.
Ao observar mais detalhadamente os nomes dos palestrantes, além de muitos já serem conhecidos por abordagens transfóbicas e que lançam mão do transpanic, identificamos a completa ausência de pessoas trans compondo ou participando, especialmente pesquisadores e profissionais trans da área de saúde ou especialistas que pesquisam o tema. Assim como não há a participação de qualquer instituição de referência na luta pelos direitos trans na organização ou dentre os apoios. E o que vemos são diversas instituições que sequer tem qualquer acumulo, seja na teoria e pesquisa, no atendimento ou mesmo na prática sobre as necessidades e o atendimento humanizado das pessoas trans.
Notamos com muita preocupação que o congresso conta ainda com a participação do responsável pelo ambulatório trans que atende crianças e jovens trans em SP. Já conhecido por suas posições altamente retrógradas e patologizantes, algumas delas apontadas aqui: https://antrabrasil.org/2019/04/07/nota-publica-repudio-entrevista-dr-alexandre-saadeh-ao-portal-universa/amp/ e aqui https://antrabrasil.org/2019/04/24/o-mito-da-disforia-de-inicio-rapido-e-de-contagio-social-mencionada-por-alexandre-saadeh/amp/, assim como também consta a participação da pessoa responsável por tentar difundir a ideia de que exista uma epidemia trans (SIC) em curso no país, e que teve uma palestra cancelada pelo reconhecimento do absurdo que esse tema sugere.
Em nossa perspectiva, esse congresso não passa de uma tentativa de organizar uma política antitrans, e que deliberadamente ignora a completa falta de políticas públicas que garantam esse acesso a jovens trans no país, a urgência da luta pelo fortalecimento da política no Sistema Único de Saúde (SUS) como o processo transexualizador que vem sendo sucateado ou a quantidade insuficiente de ambulatórios e hospitais de referência nos cuidados específicos da saúde trans. Dessa forma, tentando confundir a população com a difusão de ideias que incentivam e promovem diversas violações de direitos e levam ao sofrimento físico e mental de pessoas trans, ao negar os efeitos positivos que o acesso aos cuidados em saúde propiciam, incluso o bloqueio hormonal, e o quanto o acesso a esse tipo de cuidado já se mostrou eficaz e seguro sob diversas óticas e seus resultados.
Precisamos estar atentas a quem está organizando e de onde vem o financiamento para esse tipo de evento que conta com apoio de instituições que tentam se isentar, mas que estão contribuído para a institucionalização da transfobia, sobretudo nos cuidados em saúde.
Estamos mobilizando ações e diversas frentes de mobilização com vários grupos para ver que tipo de providências podem ser tomadas diante de mais essa tentativa de disseminar fakenews e teorias fundadas na transfobia e no ódio a liberdade e diversidade de gênero. E solicitamos as pessoas que parem de compartilhar qualquer tipo de informação, link, print ou mídia que levem a visibilidade para ações transfóbicas, e que se possível encaminhem para instituições e órgãos que possam tomar providências, exigindo respostas e ações concretas.
Recomendamos ainda o imediato cancelamento desse evento e que a disseminação de seus ideais sejam interrompidas sob o risco de danos gravíssimos para as pessoas trans.
Brasil, 13 de maio de 2022.
Associação Nacional de Travestis e Transexuais
=========================================
=============================
[1] Optamos por omitir nomes e informações que contribuam para a disseminação do evento ou de seus organizadores visto que a existência de algo tão vil já é de conhecimento público de grande parte das pessoas que lutam pelos direitos trans.
[2] https://brasil.un.org/pt-br/83343-oms-retira-transexualidade-da-lista-de-doencas-mentais
[3] https://site.cfp.org.br/tag/resolucao-01-2018/#:~:text=A%20Resolu%C3%A7%C3%A3o%20CFP%20n%C2%BA%2001,desenvolvimento%20de%20culturas%20institucionais%20discriminat%C3%B3rias.