Carta aberta do Movimento Nacional de Travestis e Transexuais em desagravo a ONG Minha Criança Trans

Notas e Ofícios

As instituições que assinam esta carta vem a público posicionar suas inquietações a respeito da atuação que a ONG “Minha Criança trans” vem mantendo em relação ao movimento nacional de pessoas trans e diante da busca por legitimidade para atuar em nome de crianças e jovens trans, mantendo posicionamentos distantes das dimensões críticas que a luta de  pessoas trans tem produzido.

Cabe destacar que discutir a infância é também discutir o nosso próprio futuro e de nossa luta, e nesse sentido, exigimos ser incluídas e efetivamente construir aquilo que está sendo pautado sobre crianças trans. Insta frisar que esta não é uma pauta alheia a nossa atuação. E é exatamente por isso que se torna inadmissível que a cisgeneridade siga tentando se apropriar de nossos corpos do nascimento ao post mortem a fim de gerar capital político para si. Além disso, garantir que ações e pesquisas sobre nós, contem com nossos corpos, é exercer o pleno comprometimento com uma inclusão não tutelada e que celebra a potencialidade das pessoas trans. Não mais sendo usadas como objetos de estudo, perpetuando o lugar excludente que a academia tem destinado as narrativas e construções de saber advindos da sociedade civil e efetivando pesquisas que deveriam tirar o foco do olhar cisgênero sobre nossos corpos.

A autointitulada “única instituição de luta que atua em defesa dos direitos trans”(SIC) não se trata de uma ONG organizada por pessoas Trans, mas uma instituição de pais de pessoas trans, na qual algumas de suas representações – em sua maioria cisgêneras, brancas e de classe média/alta – têm circulado em diversos espaços institucionais que já se mostraram publicamente terem  posicionamentos transfóbicos e patologizadores  acerca dos cuidados em relação à crianças e jovens trans.

Há  tempos que temos alertado sobre o quanto esses mesmos pais, munidos de benevolência, muitas vezes diante de sua própria incapacidade de lidar com a questão ou encontrarem apoio fora do campo biomédico, assumem o protagonismo dessas vivências e acabam por silenciar as narrativas e vozes de s jovens trans. O que nos chama atenção visto que denuncia a própria dificuldade dessas pessoas em se repensarem como   produtoras e reprodutoras de transfobias e suas limitações cis-centradas em relação ao tema, seus avanços e as  pautas contemporâneas. O que se agrava quando se mantém uma atuação sem qualquer tipo de diálogo e parceria com o movimento trans politicamente mobilizado, mais precisamente com as instituições que têm pessoas trans à frente e que atuam em defesa dos direitos trans.

Em trinta anos de atuação, conseguimos acumular legitimidade e resultados positivos para nossa luta entendendo que apenas a coletividade e o diálogo intersetorial entre pares tem sido capaz de promover as mudanças que temos vivido, fruto da construção dos movimentos trans e aliados, assim como o próprio avançar da cidadania trans, que advém da capacidade de articulação, consistência e estratégia.

Lastimavelmente, o resultado da inobservância desse tipo de mobilização é a manutenção de pessoas cisgêneras que seguem instrumentalizando nossa pauta e construído carreiras em nosso nome, sem que sejamos  incluídas – o que embora pareça algo positivo para olhares mais descuidados –  não nos ajudam aquelas pessoas que pretendem manter fortalecido o pacto narcisístico da cisgeneridade[1], que seguem contribuindo para inviabilizar a participação e promover o silenciamento de instituições de notória atuação pública em defesa dos direitos trans, assim como dificultam a inclusão de especialistas e pesquisadores trans no acolhimento de  nossas próprias infâncias.

A pauta pela despatologização das identidades trans, por exemplo, é uma luta histórica de pessoas trans ao redor do mundo e aquilo que conquistamos para pessoas adultas não pode ser usado para seguir tutelando, adoecendo, limitando potências, normatizando e tratando como uma doença as expressões não normativas de identidades de gênero na infância.  Se por um lado, defendemos o acesso à saúde para todes e, este ainda necessita de um código para ser assegurado, por outro, no caso de crianças trans esse mesmo tipo de procedimento se torna absurdo visto que ninguém defende cirurgias ou hormonização para crianças, e por isso a patologização e a tutela infantil mais parece a criação de um problema para oferecer uma suposta solução que desconsidera os avanços, pesquisas e outras epistemologias que a própria ciência e pesquisadores trans têm produzido.

Aliás, condicionar o acesso a um acompanhamento médico psiquiátrico e/ou psicológico a transgeneridade é atuar contrariamente ao entendimento de que esta não se trata de uma doença e atua diretamente para promover adoecimento, e violar os direitos humanos dessas pessoas.  Nenhuma pessoa – cis ou trans – precisa ter um diagnóstico para fazer terapia, assim como a terapia não pode ser compulsória  em detrimento ao desejo expresso da própria pessoa. E é fato que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a própria Constituição Federal já asseguram e determinam que toda criança tem direito à saúde, educação, cuidados diversos, mas também a uma infância livre.

Entendendo a importância do tema, defendemos que toda e qualquer ação que se pretenda discutir essa questão de forma ética e responsável se comprometa em construir espaços plurais, e que sejamos efetivamente incluídas nesse processo.

Nesse sentido, é preciso traçar um entendimento que considere a integralidade do sujeito e suas próprias necessidades, afastando-se de olhares patologizantes. Não podemos mais aceitar ideais que se submetem ao saber médico de forma acrítica e ignorem o impacto que a manutenção da transgeneridade como uma doença gerou às pessoas trans ao longo da história.

Ante ao exposto, afirmamos que  a ONG “Minha Criança Trans” não faz parte das nossas organizações representativas e repudiamos o descompasso que a mesma tem mantido em relação luta das pessoas trans por não representar aquilo que temos construído ao lado de pesquisadoras trans, especialistas e estudiosos, assim como ativistas e instituições que defendem os direitos humanos trans. Devido a isso ela não pode usurpar o protagonismo da pauta de crianças e jovens trans de pessoas trans e/ ou falar em nosso nome.

Falar de nós, sem nós, é transfobia.

Ser trans não é doença!

Crianças trans existem e não são uma patologia.

BRASIL, 20 de Abril de 2023

Associação Nacional de Travestis e transexuais (ANTRA)

Associação Brasileira de lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e pessoas Intersexo (ABGLT)

Fórum nacional de travestis e Transexuais negras e negros (FONATRANS)

Instituto Brasileiro de TransMasculinidades (IBRAT)

Liga Nacional TransMasculina João W. Nery  (LigaJWNERY)

Rede Nacional de Pessoas Trans Vivendo e Convivendo com o HIV (RNTTHP+)

Conexão Nacional de Mulheres Transexuais e Travestis de Axé (CONATT)

Coletivo de Artistas Transmasculines (CATS)

Fórum Estadual de Travestis e transexuais do Rio de Janeiro (FORUMTTRJ)

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[1] Adaptação das elaborações propostas por Cida Bento em “Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público”.