
A recente manifestação calculada da senadora Damares Alves, em suposta defesa de cotas para pessoas trans ou demonstrando simpatia pela pauta, longe de ser uma surpresa, evidencia não uma guinada progressista por parte da extrema-direita, mas o tamanho do vácuo político deixado diante das pautas de gênero e da cidadania trans. Esse espaço, que deveria ser ocupado com coragem, coerência e compromisso com os direitos humanos e com o reconhecimento da reparação histórica, tem sido abandonado por medo, conservadorismo, aversão ou puro cálculo eleitoral.
Durante sua gestão enquanto ministra no governo bolsonaro, Damares Alves “reconfigurou” os direitos humanos, desviando o foco da universalidade e da autonomia para agendas conservadoras em defesa de embriões e da proteção de infâncias contra o espantalho da “ideologia de gênero”, enquanto minimizava as demandas por liberdade, representatividade e igualdade política das agendas feministas, populações negras e indígenas, e da população LGBTQIA+. Esse processo, chamado de “depuração dos direitos humanos” por especialistas, enfraqueceu institucionalmente os direitos desses grupos e esvaziou completamente a agenda LGBTQIA+, fortalecendo agendas antigênero e pró-vida – contra o aborto, mesmo nos casos previstos por lei. Damares, em diversos momentos, tokenizou corpos trans enquanto utilizava o discurso dos direitos humanos para negar legitimidade às pautas trans e LGBTQIA+, culpando a esquerda por exclusões destes temas e reforçando um moralismo conservador estatal. Não esqueçamos que foi em sua gestão que as comunidades terapêuticas ligadas a instituições religiosas foram instrumentalizadas e fortalecidas com destinações volumosas de recursos, assim como abriu-se um canal de denúncias no Disque 100 contra professores que estariam supostamente doutrinando crianças nas escolas. Assim, transformou os direitos humanos em uma retórica seletiva que marginaliza e fragiliza agendas importantes de grupos historicamente minorizados em nome da moral e de costumes que mobilizam o bolsonarismo no país.
Esperta como é, Damares Alves — ex-ministra e articuladora da bancada fundamentalista na Câmara, conservadora antifeminista e uma das principais agentes antigênero do país — manipula uma narrativa cuidadosamente calculada para parecer inclusiva e bem-intencionada, enquanto tenta apagar os prejuízos que causou à luta das mulheres, os ataques ao aborto legal e as negligências resultantes de sua atuação contra as reivindicações e organizações por justiça reprodutiva e pela diversidade sexual e de gênero.
Trata-se de uma moldura que até reconhece a existência de sujeitos vulneráveis, mas apenas sob a lógica da tutela em nome da proteção — jamais da promoção da autonomia. Nesse modelo, os direitos são concedidos como concessões caritativas, nunca como garantias inalienáveis. É por isso que se pode defender cotas para pessoas trans ao mesmo tempo em que se nega a essas mesmas pessoas o direito de decidir sobre seus corpos ou suas identidades, e negar a existência de crianças trans. O que está em jogo, portanto, é uma disputa profunda e sofisticada sobre o próprio sentido dos direitos humanos, que, esvaziados de seus fundamentos de liberdade e autodeterminação, passam a servir como instrumentos de contenção e controle, e não de emancipação – o que é a antítese do que defendemos.
Nessa aparição mais recente, o que a senadora faz é manipular o conservadorismo para parecer algo diferente do que realmente é, fortalecer bases bolsonaristas — que chegaram a 29% entre LGBTQIA+ nas eleições de 2022 — e acenar para aquelas pessoas que, devido ao cenário adverso e de extrema violência, sentem que estão sendo deixadas para trás pelos recuos e reveses do governo atual. Em várias oportunidades políticas — com destaque para o “RG transfóbico”, as “cotas trans no CNU”, a “saúde trans” que não avança na publicação do PAESPOPTRANS e impede cuidados específicos para crianças e jovens trans —, o governo tem se mantido em silêncio, especialmente frente ao bolsonarismo do Conselho Federal de Medicina.
A falta de posicionamento público do campo progressista e a crise conservadora do “antiidentitarismo” que ganha força em partidos de esquerda, denuncia um descompasso na defesa dos direitos trans quando observamos os ataques transnacionais que essa população tem sofrido desde a eleição do bolsonaro, de trump e milei, passando por decisões absurdas no Reino Unido, na Rússia e na Hungria, por exemplo. Como efeito desse processo, vemos uma parcela da comunidade trans ser empurrada em direção a esse discurso vazio de sentido e escasso de compromisso político, mas cheio de populismo, que atinge em cheio os desesperos por necessidades básicas — neste caso: por políticas específicas essenciais. Resgatamos que em 2020, nossas pesquisas demonstraram que 40% das candidaturas trans foram em partidos ligados às bases bolsonaristas, embora a maioria das eleitas tenha sido por partidos de esquerda.
E aqui cabe reafirmar: a ANTRA jamais se calou diante do autoritarismo que ascendeu como forma de governo. De forma ética e inegociavelmente comprometida com os direitos humanos e com os valores democráticos, nos retiramos de qualquer interlocução com a gestão bolsonarista — um projeto que, sob o comando de figuras como Damares Alves, aprofundou desigualdades, violências diversas, os ataques à comunidade trans e instrumentalizou o Estado para radicalizar a agenda antigênero no Brasil. Nosso afastamento, além de condizer com nossa posição histórica, foi um posicionamento ético-político, pautado pela convicção de estarmos do lado certo da história. Ainda assim, assistimos, com indignação, à atuação de pessoas e instituições que, sob o pretexto do diálogo estratégico, optaram por colaborar com aquele governo — articulações feitas nunca em nosso nome, nunca com nosso aval e sempre à revelia da luta que travamos por dignidade e sobrevivência.
Não podemos nos enganar. Enquanto a extrema-direita bolsonarista instrumentaliza nossas pautas para reconfigurar sua imagem pública em campanhas sórdidas, setores da esquerda seguem hesitantes — presos a discursos antiquados, evitando qualquer incômodo e fugindo do debate de gênero por medo de desagradar segmentos conservadores. Essa omissão se transforma em cumplicidade e, por vezes, até em certo assimilacionismo de setores do próprio campo progressista que se articulam para atacar e deslegitimar movimentos, militantes e lideranças trans. São segmentos que, cada vez mais à vontade, vocalizam abertamente seu repúdio a conceitos como gênero e às lutas históricas do movimento trans. Esse pânico moral, disfarçado de estratégia, expõe não apenas uma crise de compromisso político, mas uma traição histórica às lutas que ajudaram a eleger, sustentar e defender o campo dito “progressista”.
A esquerda que se autoproclama aliada da diversidade precisa, urgentemente, sair do armário e reconhecer que seu silêncio e a omissão diante da violência e da exclusão da população trans são formas de cumplicidade, ruptura e desgaste, pela ausência de compromissos e entregas. Não se governa com boas intenções: é preciso compromisso, ação e políticas públicas efetivas. Quando lideranças progressistas fazem recuos em períodos eleitorais, evitam nos nomear, defender nossas vidas ou nos incluir em seus projetos de país, a extrema-direita se apropria de nossas pautas para tentar redesenhar sua narrativa e carreira pública. E os exemplos trazidos por Damares em suas falas sobre nós demonstram isso de forma explícita e incontroversa.
Neste contexto, a ANTRA afirma com firmeza: não aceitaremos ser palanque da extrema-direita. Não é possível celebrar um conveniente discurso de suposto “apoio” de alguém que teve, como ministra de Estado por quatro anos, a oportunidade de avançar na agenda de direitos humanos e não apenas não o fez, como obstaculizou o avanço e o exercício dos direitos da população trans. Mas também não aceitaremos mais o descaso, o abandono e o descompromisso de quem diz defender os direitos humanos e uma agenda progressista, mas revela verdadeiro pavor quando o assunto somos nós. Fica o alerta: se Damares está surfando nessa onda, é porque a esquerda deixou o mar livre. Não em nosso nome!
A vida, os direitos e as urgências das pessoas trans e travestis devem ser assumidos, de uma vez por todas, como um compromisso inegociável — incompatível com os projetos neoliberais, fascistas, antigênero e entreguistas da extrema-direita. É dever de toda força política comprometida com a defesa da democracia, do estado laico, de melhores condições de vida e justiça social sustentar essa aliança com coragem — e não apenas quando a extrema-direita decide se apropriar da pauta.
ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais
30 de julho de 2025

Um comentário sobre “NOTA DA ANTRA – ENTRE O OPORTUNISMO E A OMISSÃO: QUEM DEFENDE A CIDADANIA TRANS?”
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