
A ANTRA vem a público manifestar sua preocupação diante de reiteradas narrativas que tentam colocar em dúvida a eficácia de mecanismos legais que asseguram a autodeclaração como medida de proteção e garantia de direitos a populações historicamente vulnerabilizadas.
O discurso de que a autodeclaração de gênero “abriria portas para abusos” não é novidade e segue um padrão já observado em outros contextos de direitos sociais. É o mesmo argumento, sem qualquer fundamento, usado para afirmar que mulheres se aproveitam da lei maria da penha; para silenciar vítimas de violência e estupro; que pessoas poderiam fraudar os cordões de identificação de deficiências ocultas; que supostas fraudes em cotas raciais justificariam sua eliminação; ou que homens poderiam manipular a autodeclaração de gênero para escapar de responsabilidades judiciais ou criminais.
Esse argumento geralmente surge da percepção divergente — e às vezes do desconhecimento — entre a autodeclaração, ou seja, o que a pessoa afirma ser, sentir ou vivenciar, e a heteroidentificação, ou seja, como os outros percebem essa declaração. O problema se agrava quando pessoas trans, negras e mulheres têm suas narrativas tratadas como suspeitas, fraudulentas ou desprovidas de presunção de veracidade, julgamento que é motivado e reforçado por impulsos discriminatórios e estereótipos negativos a seu respeito.
Em todos esses casos, as supostas fraudes são excepcionalíssimas e não refletem a realidade da maioria das pessoas que demandam proteções e direitos específicos, servindo apenas para gerar medo e restringir direitos conquistados com luta e legitimidade. Reconhecer essa lógica é fundamental para afirmar que a autodeclaração é um critério que tem segurança jurídica, é legítimo do ponto de vista social e necessário para garantir acesso pleno a direitos.
Embora pareçam preocupações legítimas, essas narrativas são enganosas e perigosas. Elas tentam convencer a opinião pública a se opor a conquistas importantes, baseando-se apenas em casos isolados que, na prática, não representam a regra. Trata-se de uma estratégia política para fragilizar, desacreditar e retroceder direitos, usando exceções para atacar mecanismos que funcionam, salvam vidas e promovem justiça social.
É evidente que fraudes e manipulações existem e precisam ser enfrentadas caso a caso. Para isso, existem instrumentos jurídicos e administrativos capazes de monitorar, previnir e coibir abusos e responsabilizar eventuais autores. Incluindo-se ainda critérios de elegibilidade bem definidos quanto se trata de políticas públicas.
Por outro lado, o que não pode ser aceito é que casos de fraudes na autodeclaração sejam explorados para confundir a opinião pública e criar narrativas que visam proibir ou restringir direitos, sobretudo quando partem de reflexos da misoginia, transfobia, racismo e do capacitismo.
Diante desses argumentos, é fundamental reafirmar que nenhum mecanismo de proteção ou de garantia de direitos deve ser enfraquecido por conta de distorções criminosas ou fraudulentas, muito menos por alegorias discursivas.
Quando falamos de leis e conquistas voltadas a grupos historicamente vulnerabilizados — sejam mulheres, pessoas trans, pessoas negras ou qualquer outra população — o foco precisa estar na proteção da maioria que realmente necessita e pode acessar as medidas de reparação e justiça propostas por esses instrumentos.
Para enfrentar esse tipo de discurso, é essencial reforçar a eficácia das leis, destacando dados que comprovem como elas salvam vidas, garantem direitos e reduzem violências; enfatizar a raridade dos abusos, mostrando que os casos de uso indevido são raros e não justificam o desmonte da proteção legal; denunciar a estratégia misógina, racista, capacitista e transfóbica, evidenciando que tais críticas não nascem de preocupação com “justiça”, mas sim de tentativas de deslegitimar conquistas históricas de grupos oprimidos; e propor caminhos de qualificação, discutindo medidas de fiscalização e aplicação que tornem as leis mais efetivas, sem jamais retirar direitos.
Seguiremos denunciando todas as tentativas de deslegitimação que buscam enfraquecer nossas lutas. Nossa posição é firme: mecanismos legais que asseguram a autodeclaração como medida de proteção e garantia de direitos são conquistas históricas, legítimas e inegociáveis.
Brasília, 20 de agosto de 2025
Associação nacional de travestis e transexuais – antra
