
A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) protocolou, Ofício junto ao Ministério da Defesa, solicitando providências urgentes para corrigir distorções e constrangimentos que vêm afetando mulheres trans e travestis no processo de alistamento militar obrigatório. O documento denuncia uma prática incompatível com os direitos constitucionais e a dignidade humana, uma vez que obriga mulheres trans a se submeterem a procedimentos destinados exclusivamente a pessoas do gênero masculino — realidade que fere diretamente o reconhecimento da identidade de gênero garantido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Na prática, o atual sistema de alistamento militar exige que mulheres trans obtenham o Certificado de Dispensa de Incorporação (CDI) para conseguirem retificar seu registro civil, incluindo nome e gênero. Esse processo as força a comparecer pessoalmente a Juntas do Serviço Militar — ambientes frequentemente hostis e constrangedores — apenas para cumprir uma formalidade burocrática que não deveria sequer lhes ser aplicada em claro descompasso com o direito a autodeterminação de gênero que lhes é assegurado. Em muitos casos, quando o pedido é feito após os 18 anos, ainda são impostas multas por suposto “atraso no alistamento”, penalizando ilegalmente essas mulheres por uma obrigação da qual, constitucionalmente, estão dispensadas.
A ANTRA argumenta que essa exigência não apenas viola o princípio da igualdade, mas perpetua situações de discriminação institucional, nas quais o Estado impõe barreiras para o exercício pleno da cidadania. Diante disso, a entidade propôs ao Ministério da Defesa a criação de um procedimento administrativo específico e acessível, que reconheça o direito dessas mulheres à autodeterminação de gênero sem constrangimentos nem exigências indevidas.
Entre os pedidos apresentados pela ANTRA, destacam-se:
- A retirada da obrigatoriedade de alistamento militar para mulheres trans e travestis que vivem pública e abertamente sua identidade de gênero feminina;
- A explicitação formal de que essas mulheres estão dispensadas de qualquer comprovação de quitação militar;
- A remissão das multas aplicadas indevidamente, quando decorrentes de registros civis anteriores incompatíveis com a identidade de gênero;
- A uniformização de protocolos de atendimento em Juntas Militares e cartórios, assegurando tratamento respeitoso e em conformidade com o direito à identidade de gênero;
- A criação de um canal eletrônico no site de alistamento militar, que permita solicitar a dispensa mediante autodeclaração e envio de documentos que atestem a identidade de gênero, com emissão de um documento oficial substitutivo ao CDI.
A medida proposta pela ANTRA busca garantir segurança jurídica, acessibilidade e eficiência administrativa, além de reforçar o compromisso do Estado com a dignidade humana e com os direitos fundamentais das pessoas trans. No caso, como o alistamento não é obrigatório para mulheres, ele não pode ser exigido as mulheres trans sob nenhuma hipótese, devendo esta se alistar exclusivamente de forma voluntária, por desejo expresso da própria.
“Não se trata apenas de ajustar um procedimento burocrático, mas de corrigir uma distorção histórica que tem submetido mulheres trans a situações de constrangimento, tratamento diferenciado em relação as demais mulheres, discriminação e exclusão institucional”, afirmou Bruna Benevides, presidenta da ANTRA.
O ofício também destaca a viabilidade técnica e jurídica da proposta, amparada nas decisões do STF e nas resoluções do CNJ que asseguram o reconhecimento da identidade de gênero como direito fundamental. A criação de um mecanismo online, por exemplo, eliminaria violências institucionais, deslocamentos desnecessários, reduziria bucrocracias e custos, e ampliaria o acesso a um procedimento digno, sem ferir qualquer princípio administrativo ou militar.
Paralelamente ao envio do documento ao Ministério da Defesa, a ANTRA acionou o mandato da deputada federal Duda Salabert (PDT/MG), solicitando sua intermediação política e parlamentar sobre o tema. A deputada já manifestou apoio à pauta e se comprometeu a buscar diálogo com o Executivo e o Legislativo para garantir uma resposta efetiva. Essa articulação é vista pela entidade como um passo estratégico para que a questão seja enfrentada com responsabilidade institucional e sensibilidade social.
Com essa ação, a ANTRA reafirma seu papel histórico de vigilância e incidência política em defesa dos direitos das pessoas trans no Brasil. A entidade reitera que a garantia da cidadania plena exige o fim de procedimentos que tratam de maneira diferente, criminalizam identidades ou burocratizam existências, e convida as autoridades a assumirem o compromisso de adequar as políticas públicas aos princípios de equidade e respeito à diversidade.
“O Estado não pode seguir tratando a identidade de gênero como um problema a ser administrado, mas como um direito a ser respeitado. Nossa luta é por dignidade, e dignidade não se adia”, conclui a ANTRA.
