ANTRA concede Título de Presidentas de Honra para Traviarcas Históricas da Instituição

Cultura, Direitos e Política, Justiça

Presidentas de Honra da ANTRA: quando a memória se transforma em futuro e nos lembra que nossos passos vem de longe.

Há gestos que transcendem o tempo. E há reconhecimentos que não se limitam ao ato em si, mas carregam consigo a força de toda uma história coletiva. Assim nasceu, em 2024, a iniciativa inédita da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) de instituir e outorgar o título de Presidenta de Honra, em reverência às travestis e mulheres trans que abriram caminho e tornaram possível o que hoje é a maior rede de pessoas Trans da América Latina.

Mais que uma homenagem, trata-se de um compromisso político com a memória e com o legado das Traviarcas — aquelas que enfrentaram o impossível para garantir que outras pudessem existir com mais dignidade, visibilidade e voz. Ao criar essa honraria a pedido da presidenta Bruna Benevides como seu primeiro ato após ser eleita, a ANTRA afirma que preservar a memória é também resistir, e que cada nome reconhecido é um farol para o presente e um chamado à continuidade da luta.

Entre as primeiras agraciadas estão Claudia Pierre France, Elza Lobão, Fernanda Benvenutty, Janaína Lima, Janaína Dutra, Josy Silva, Monique du Baviera e Raquel Barbosa (in memoriam) — verdadeiras colunas fundadoras do movimento trans brasileiro — e as Presidentas de Honra em vida: Kátia Tapety, Jovanna Baby, Keila Simpson e Indianarae Siqueira, que seguem firmes, com coragem e generosidade, sustentando a travessia de tantas outras.

A entrega da placa que materializa esse reconhecimento tem percorrido os espaços simbólicos e históricos do nosso movimento. Jovanna Baby, uma das fundadoras da ANTRA e figura central na organização do movimento trans no Brasil, recebeu a homenagem durante a 4ª Conferência Nacional LGBTQIA+, realizada em Brasília — um gesto que une o passado à reconstrução de um novo tempo de participação social e democracia.

Indianarae Siqueira, por sua vez, foi agraciada durante a Conferência Estadual LGBTQIA+ do Rio de Janeiro, espaço em que sua trajetória de luta, abrigamento e solidariedade foi celebrada por quem conhece de perto o impacto de sua militância radical e humanizadora.

Keila Simpson, referência incontornável e ex-presidenta da ANTRA, recebeu a homenagem durante as ações da Parada LGBTQIA+ de São Paulo — a maior do mundo, simbolizando que a luta que começou nas margens hoje ocupa as avenidas e o coração do país.

Resta apenas a entrega do título à Kátia Tapety, a primeira travesti eleita vereadora no Brasil, que deverá ser homenageada em janeiro de 2026, durante as celebrações da Semana da Visibilidade Trans, fechando o ciclo das quatro Presidentas de Honra em vida — um gesto que reafirma o elo entre gerações e o respeito pelas pioneiras que ousaram existir quando tudo era interdito.

Para Bruna Benevides, presidenta da ANTRA, instituir e entregar essa honraria em vida é um ato de gratidão e justiça histórica:

É uma honra imensa poder olhar nos olhos dessas mulheres que transformaram o impossível em realidade e dizer: nós reconhecemos vocês. O que somos hoje é fruto do que vocês foram, e do que continuam sendo. Este gesto é uma semente plantada no solo da nossa memória coletiva, para que jamais deixemos de lembrar quem abriu o caminho.

A homenagem se soma a outras ações da ANTRA voltadas à preservação da memória e valorização da população trans e travesti mais velha, como a Traviarcas: Pesquisa Nacional sobre Envelhecimento Trans, atualmente em curso e o pedido de Anistia Coletiva para as Travestis presas em operações policiais na Comissão Nacional de Anistia. Reconhecer as Traviarcas, suas lutas e legado é, portanto, reafirmar o compromisso com um movimento que não esquece suas origens — um movimento que sabe que o futuro se constrói com as mãos e as histórias de quem veio antes.

Em tempos em que o apagamento tenta silenciar nossas narrativas, celebrar essas trajetórias é um ato de amor, coragem e desobediência. Porque sem elas, não estaríamos aqui. Porque viva as Trancestrais, vivas as Presidentas de Honra, viva a luta que continua!

ANTRA protocola pedido histórico para reconhecimento do Pajubá como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil

Cultura, Direitos e Política, Justiça

A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) protocolou, no dia 20 de outubro de 2025, o Ofício solicitando à deputada federal Erika Hilton a apresentação de um projeto de lei que reconheça o Pajubá — ou Bajubá — como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, conforme os parâmetros técnicos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). A iniciativa inédita no país propõe que essa linguagem ancestral e insurgente, criada e difundida por travestis e mulheres trans, seja formalmente reconhecida como parte do patrimônio cultural do país, com ações de salvaguarda, documentação, ensino e fomento cultural.

O pedido é um marco no reconhecimento da memória e da produção simbólica das travestis brasileiras, que historicamente criaram formas próprias de comunicação como estratégia de sobrevivência e de afirmação identitária em contextos de exclusão, perseguição e violência. O documento encaminhado pela ANTRA reforça que o Pajubá/Bajubá é mais do que uma linguagem — é uma “tecnologia transcestral”, um legado linguístico que atravessa gerações e conecta saberes, afetos e resistências.

De origem afro-brasileira desde o século XX, o Pajubá é um socioleto — isto é, uma variação linguística criada e utilizada por um grupo social específico — formado a partir da incorporação de palavras de origem iorubá e nagô, combinadas a expressões populares e gírias urbanas. Sua difusão se intensificou a partir das décadas de 1970 e 1980, especialmente nos circuitos travestis e nos espaços culturais e noturnos das grandes cidades brasileiras, consolidando-se como um símbolo de identidade coletiva e que foi posteriormente incorporado como elemento importante de comunicação afetiva dentro da comunidade LGBTQIA+.

O ofício destaca que o reconhecimento oficial do Pajubá como Patrimônio Imaterial não é apenas um gesto de valorização cultural, mas uma medida de reparação simbólica e justiça social, uma vez que fortalece políticas públicas voltadas à memória e à preservação das expressões culturais marginalizadas. A proposta prevê ações de salvaguarda em parceria com o IPHAN e o Ministério da Cultura, incluindo a produção de acervos orais, dicionários comunitários, materiais educativos e projetos de formação sobre a importância do Pajubá para a cultura brasileira.

Entre as referências apresentadas pela ANTRA no pedido, ganha destaque a obra “Diálogo de Bonecas”, escrita por Jovanna Baby e publicada em 1995 pelo ISER/PIM, considerada a primeira publicação impressa em Pajubá/Bajubá. A obra é um marco literário e político por registrar e celebrar o modo de falar das travestis brasileiras, numa época em que o país ainda negava visibilidade a essas identidades. Segundo pesquisas acadêmicas recentes, Diálogo de Bonecas é também um testemunho da oralidade travesti e de como essa linguagem atuou como escudo de proteção em tempos de censura e repressão.

O documento da ANTRA cita ainda trabalhos de pesquisadoras como Amara Moira, que descreve o Pajubá como um “território linguístico de invenção e insurgência”, e estudos como Pajubá: Justiça Estética e Patrimônio Imaterial (UDESC), que defendem a sua inscrição como manifestação cultural a ser preservada pelo Estado.

Em nota, a presidenta da ANTRA, Bruna Benevides, destacou o caráter histórico da iniciativa:

“Este pedido é um gesto de reparação simbólica e de justiça cultural. O Pajubá é uma herança viva das travestis brasileiras, um idioma da resistência e do afeto. Reconhecê-lo como patrimônio cultural imaterial é afirmar que nossas histórias, nossas vozes e nossos saberes têm lugar na memória oficial do país.”

A ANTRA reafirma seu compromisso com a valorização da memória travesti e com o fortalecimento das políticas de justiça cultural, e anuncia que dará continuidade à interlocução com o IPHAN e o Ministério da Cultura para garantir que o processo de inventariação e registro do Pajubá seja conduzido com protagonismo e participação direta das comunidades travestis e trans.

A proposta busca ainda proteger o uso do Pajubá de apropriações indevidas ou pejorativas, assegurando que sua difusão se mantenha ligada aos princípios de respeito, pertencimento e valorização da diversidade cultural. O reconhecimento do Pajubá como patrimônio imaterial, destaca o ofício, é também um passo essencial para garantir políticas de educação patrimonial, incentivo à pesquisa e fortalecimento da autoestima de pessoas trans e travestis em todo o país.

Com este movimento, a ANTRA consolida-se como referência na defesa da cultura, da memória e da dignidade travesti e trans no Brasil, e reafirma que o legado linguístico das travestis brasileiras — tão vivo nas ruas, nos palcos, nas escolas de samba e nas redes de afeto — merece estar também registrado entre os bens culturais mais valiosos do país.


📚 Referências Principais

  • BABY, Jovanna. Diálogo de Bonecas. Rio de Janeiro: ISER/PIM, 1995.
  • MOIRA, Amara. “A Neca de Amara Moira: uma voz pajubeyra”. Periódico Folio, UESB.
  • “Pajubá: Justiça Estética e Patrimônio Imaterial”. Revista Urdimento, UDESC.
  • IPHAN. Patrimônio Cultural Imaterial. Disponível em: gov.br/iphan.