Contra a Transfobia: LGB cis antitrans foram retirados da Conferência Nacional LGBTQIA+

Direitos e Política, Justiça

A 4ª Conferência Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, realizada em Brasília, foi palco de um episódio que escancara os desafios ainda presentes mesmo nos espaços criados para garantir a diversidade e a inclusão. Delegadas e delegados protocolaram um requerimento formal solicitando o descredenciamento representantes acusados de condutas transfóbicas reiteradas e contrárias aos princípios da Conferência e dos direitos humanos. A denúncia foi acolhida e resultou na retirada definitiva do espaço deliberativo, em decisão amplamente ratificada pela plenária com aplausos e manifestações de apoio às pessoas trans.

O documento entregue à Comissão Organizadora denuncia que haviam pessoas promovendo assédio antitrans, tumultos, constrangimentos e disseminando discursos trans-excludentes em grupos de trabalho para a construção de propostas, além de tentar propor moções com o objetivo de suprimir direitos garantidos às pessoas trans e defender a retirada da letra T da silga LGBTQIA+. As falas e movimentações denunciadas ultrapassaram o campo da liberdade de expressão e do debate democrático: foram manifestações abertamente discriminatórias e desumanizadoras, atentando contra a dignidade de participantes trans e não binárias, e ferindo o caráter seguro, plural e inclusivo da Conferência.

Com base no artigo 2º, §3º, inciso IV do Regimento Interno, os denunciantes lembram que não são admitidas “propostas, moções ou manifestações de quaisquer tipos de caráter LGBTQIAfóbico”, reafirmando o princípio do não retrocesso em matéria de direitos humanos. A decisão da Comissão Organizadora em descredenciar as pessoas denunciadas, apoiou-se também no compromisso de não permitir que ideais que pretendem isolar, marginalizar, silenciar, excluir ou perseguir pessoas trans não são vem vindas, considerando sobretudo a Constituição Federal, que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana e veda qualquer forma de discriminação, e nos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil que versam sobre a proteção da identidade de gênero. O documento cita ainda o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que reconhece a homotransfobia como crime de racismo.

A Conferência, espaço construído para consolidar políticas públicas inclusivas, não pode ser terreno para discursos que negam a autodeterminação de gênero ou reduzem o conceito de gênero a critérios biológicos e essencialistas — argumentos do movimento antigênero e retórica da extrema direita. Nesse contexto, torna-se essencial compreender o papel de grupos como a LGB Alliance, organização que se apresenta como defensora dos direitos de gays, lésbicas e bissexuais, mas que na prática promove uma agenda voltada à negação da identidade de gênero e à exclusão das pessoas trans; ou ainda da mátria – entidade que tem como pauta única atacar os direitos trans ou gays com bolsonaro, que representam verdadeira contradição considerando os retrocessos promovidos pelo governo fascista do inelegível em matéria dos direitos humanos, especialmente de LGBTQIA+.

Como aponta Bruna G. Benevides, “a Alliança LGB é um grupo que se pretende maior do que realmente é, e que defende critérios biológicos para definir homens e mulheres e suas orientações sexuais, negando a existência de pessoas trans ou qualquer possibilidade de reconhecimento da identidade de gênero”. Esse posicionamento essencialista — que reduz gênero ao binário fixo e ao sexo biológico — não soma à luta por direitos humanos, mas ataca diretamente a presença digna das pessoas trans nos espaços de participação política. Esses agentes articulam-se com grupos conservadores e se utiliza de discursos supostamente feministas ou “internos ao movimento LGB-cis” para legitimar uma pauta antitrans, contribuindo para a desmobilização das lutas reais dos movimentos LGBTQIA+ e legitimando formas latentes de transfobia. Essa estratégia, como analisa Benevides, é a de um “cavalo de Tróia dentro do arco-íris”, ao buscar manter uma imagem hegemônica cisgênera como figura central da representação LGBTQIA+, ferindo não apenas a ética da inclusão, mas também traindo a historia da luta por liberdade corporal, sexual e de gêneros, além dos tratados internacionais e decisões que garantem o direito à identidade e à autodeterminação de gênero.

Essas articulações revelam um projeto político de retrocesso: grupos que se apresentam como defensores de “valores originais do movimento LGBT”, mas que, na prática, operam como braços do ecossistema antigênero, com alianças obscuras junto à extrema direita. Não por acaso, parte desse segmento esteve entre os 29% da população LGBTQIA+ que votou em Jair Bolsonaro em 2018, segundo dados do Instituto Locomotiva, endossando um governo que sistematicamente atacou pessoas trans, mulheres e povos indígenas.

Por isso, a decisão da Conferência não representa censura, mas proteção. Proteger pessoas trans de ataques em um espaço que deveria acolhê-las é uma medida ética e política indispensável. A exclusão das pessoas reafirma o compromisso da Conferência com o respeito à diversidade e à dignidade humana, garantindo um ambiente seguro para todas as existências, conforme pediram as delegadas signatárias do requerimento.

Durante a plenária, o anúncio do descredenciamento foi recebido com aplausos e palavras de apoio às pessoas trans, ecoando o espírito coletivo de resistência e solidariedade que marcou o evento. A ministra Macaé Evaristo, em sua fala de abertura, já havia enfatizado que não há luta por direitos humanos sem as pessoas trans, posição reiterada por Symmy Larrat, secretária nacional LGBTQIA+, por representantes governamentais e pela sociedade civil.

A Conferência deixou um recado inequívoco: não há espaço para discursos de ódio disfarçados de divergência política. Quem tenta excluir pessoas trans do debate não está propondo rupturas — porque nunca esteve verdadeiramente ao lado da luta LGBTQIA+, do feminismo, das lutas antirracistas ou da democracia. A defesa da diversidade é inegociável, e o Brasil segue dizendo, com coragem e lucidez: nenhum passo atrás nos direitos humanos e na defesa dos direitos trans.

ONU reafirma que biologia não é destino e destaca o gênero como chave para a igualdade e os direitos humanos

Direitos e Política, Notas e Ofícios

Declaração conjunta dos titulares de mandatos dos procedimentos especiais da ONU reafirmam a centralidade do gênero como instrumento para promover a igualdade e todos os direitos humanos

No dia 28 de agosto de 2025, 45 titulares de mandatos de procedimentos especiais das Nações Unidas reafirmam a igualdade de gênero como uma pedra angular dos direitos humanos e da igualdade substantiva. “Tal como os movimentos feministas e de defesa dos direitos das mulheres e as normas internacionais em matéria de direitos humanos há muito afirmam, a biologia não é um destino”. A discriminação baseada no gênero deve ser abordada a par da discriminação baseada no sexo. Enquanto o “sexo” se refere a características biológicas, o “gênero” fornece uma perspectiva analítica mais ampla e mais saliente, abrangendo as identidades, os papéis e as expectativas socialmente construídos que moldam a vida dos indivíduos. Estas dinâmicas reforçam as hierarquias de poder e, frequentemente, produzem ou mantêm desvantagens para as mulheres em toda a sua diversidade.

Assim, as concepções de feminilidade não são modeladas apenas pela biologia, mas através de processos de socialização (incluindo através de sistemas educativos), formas de discriminação que se cruzam, a aplicação de normas de gênero e a mudança ao longo do tempo. Estas interações conduzem frequentemente à negação dos direitos de mulheres e meninas. Os enquadramentos legais e políticos que não têm em conta esta realidade, ou que impõem divisões rígidas entre sexo e gênero, são limitados na sua capacidade de abordar de forma significativa a desigualdade estrutural ou de assegurar a plena realização dos direitos humanos universais das mulheres e meninas.

Os peritos manifestaram profunda preocupação com os esforços de alguns Estados e outros atores para negar a relevância do gênero, reafirmando concepções fixas e binárias do sexo que ignoram os fatores sociais e culturais que moldam a identidade e a experiência vivida. “Estas abordagens não refletem a diversidade das experiências vividas pelas mulheres e meninas e ignoram as realidades das pessoas que enfrentam discriminação com base na orientação sexual, na identidade de gênero ou na expressão de gênero. Estão muitas vezes enraizadas em informações erradas que reforçam estereótipos de gênero prejudiciais, invocam formas erradas de ‘protecionismo’ e afastam-se de estratégias baseadas em provas essenciais para alcançar a igualdade de gênero e proteger os direitos de todas as mulheres e meninas.”

Salientaram a importância de garantir que o gênero e a discriminação e violência baseadas no gênero permaneçam no centro do direito internacional dos direitos humanos. “Isto não só porque a proibição da violência baseada no gênero é reconhecida como um princípio do direito internacional consuetudinário, mas também porque o gênero é uma lente analítica vital – essencial para expor as disparidades de poder, as desigualdades estruturais e as práticas discriminatórias incorporadas nas leis, instituições e normas sociais. Esta perspectiva reconhece as diferenças biológicas, ao mesmo tempo que chama a atenção para a forma como os papéis de gênero são construídos, aplicados e vividos. Sem esta perspectiva, a exclusão sistémica das mulheres e das pessoas com diversidade de gênero – particularmente aquelas cujas identidades e expressões não se enquadram nas normas binárias dominantes – permanece invisível.”

Os peritos sublinharam ainda que, sem uma perspectiva de gênero, é impossível compreender plenamente a forma como os papéis, as expectativas e as hierarquias se manifestam na educação, na saúde, na cultura, no local de trabalho ou no que diz respeito às oportunidades sociais, económicas e políticas – e como afetam o bem-estar humano. “Em contrapartida, o sexo, por si só, oferece um poder explicativo limitado para revelar as dinâmicas sociais e culturais que impulsionam a desigualdade de gênero.”

Os peritos explicaram que, embora o sexo biológico – que se refere às características físicas e reprodutivas – tenha significado, não pode explicar totalmente os padrões de marginalização que os mecanismos de direitos humanos foram concebidos para abordar. “É o gênero, enquanto construção social moldada pela história, pela cultura e pelo contexto, que determina o acesso aos recursos, às oportunidades, à vulnerabilidade à violência e à participação na vida pública. O gênero reflete a forma como as sociedades escolhem tratar os homens, as mulheres e as pessoas com diversidade de gênero: a que necessidades são dadas prioridade, que políticas são adotadas pelos Estados e pelos agentes privados e como o poder e os recursos são distribuídos. Também se cruza com outras formas de exclusão – como a raça e a etnia, a casta, a descendência, a deficiência, a idade, a religião, o estatuto de migrante, o estatuto socioeconómico e as mulheres afetadas por doenças tropicais crónicas e negligenciadas – moldando a medida em que os direitos são realizados na prática.”

Os peritos sublinharam que numerosos organismos, incluindo o Comitê CEDAW, esclareceram que o que foi originalmente enquadrado como discriminação com base no “sexo” na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e noutros tratados é, de fato, discriminação de gênero, decorrente do tratamento sociopolítico das diferenças biológicas e não das próprias diferenças. Este entendimento tem sido consistentemente reforçado por tribunais e instrumentos nacionais e internacionais em diversas regiões e contextos culturais, e tem sido promovido por movimentos feministas, de direitos das mulheres e da sociedade civil em todo o mundo, embora continue a ser contestado por alguns atores.

Através das suas Recomendações Gerais e jurisprudência, o Comitê da CEDAW também deixou claro que a discriminação com base na orientação sexual e na identidade de gênero constitui uma forma de discriminação baseada no gênero que os Estados são chamados a combater através de medidas legais e políticas específicas. Esta interpretação está em consonância com o quadro mais amplo dos direitos humanos, que reconhece a natureza interseccional da desigualdade e a necessidade de proteções não discriminatórias, inclusivas e baseadas nos direitos.

Os peritos afirmaram que as definições fixas e binárias de sexo correm o risco de reforçar – em vez de desmantelar – os próprios estereótipos que os Estados são obrigados a eliminar ao abrigo da CEDAW e de outros instrumentos internacionais de direitos humanos: “Tais definições rígidas de sexo obscurecem as desigualdades estruturais e ameaçam corroer décadas de progresso normativo e legal.”

Os peritos também sublinharam a importância de analisar a forma como as masculinidades são construídas e aplicadas. Os sistemas patriarcais não só subordinam as mulheres e as pessoas com diversidade de gênero, como também impõem ideais de masculinidade restritivos – muitas vezes prejudiciais – centrados no controle, na agressão e na supressão emocional. Estas normas normalizam a violência, corroem o bem-estar emocional e psicológico e marginalizam os homens e meninos que não se conformam com as expectativas dominantes de gênero.

As normas jurídicas internacionais sobre gênero evoluíram para refletir os avanços em diferentes disciplinas académicas, bem como a complexidade e a interdependência das desigualdades sociais. Os esforços regressivos que visam restringir as definições de sexo e gênero não acompanham esta evolução e ameaçam inverter os progressos duramente conquistados no sentido da igualdade e da dignidade para todos.

Concluíram: “Enquanto titulares de mandatos encarregados de defender os direitos humanos universais em diversos mandatos temáticos e específicos de cada país, apelamos aos Estados e a todas as partes interessadas para que reafirmem a centralidade do gênero no direito, na política e na prática internacionais. A integridade e a coerência do sistema internacional de direitos humanos dependem disso. A todas as mulheres, na sua diversidade, deve ser garantida plena e igual voz e proteção ao abrigo do direito internacional. A erradicação da discriminação baseada no gênero e da violência baseada no gênero é desafio transversal que exige respostas coordenadas, sustentadas, não regressivas e não discriminatórias por parte dos Estados, das empresas e de todos os outros intervenientes – respostas que são essenciais para concretizar a promessa de direitos humanos para todos.”

Agenda Antigênero na ONU

O comunicado dos peritos de procedimento especiais veio em meio a tensões sobre o avanço da agenda antigenero alinhada a ordem executiva de Donald Trump e ao avanço da extrema-direita ao redor do mundo. Em comunicado publicado em junho, a Relatora especial sobre violência contra mulheres da ONU, Reem Alsalem, que já vem sendo sendo criticada por sua agenda antitrans, pediu aos governos que definissem gênero com base no sexo biológico(sic), e afirmou que “a confusão entre sexo, gênero e identidade de gênero” está corroendo suas proteções. Declarando o que ela chama de “guerra contra a ideologia de gênero”. Tendo sido apoiada pela Santa Sé, Kuwait, Costa do Marfim, Burkina Faso (que recentemente criminalizou a homossexualidade) e Sudão .

A União Europeia informou a Alsalem que a abordagem de gênero era obrigatória pelo direito internacional. A Suíça e os Países Baixos consideraram a abordagem de Alsalem regressiva. A Colômbia, falando em nome de 37 países, a maioria da Europa e da América Latina, disse a Alsalem que sua abordagem representava um “retrocesso” em termos de direitos humanos. O Canadá afirmou que “gênero é uma construção social, não confinada à anatomia, e vital para a compreensão de como a discriminação e a violência operam em contextos diversos”. A Alemanha afirmou que “classificações binárias e terminologia excludente podem marginalizar grupos como pessoas LGBTQI+, profissionais do sexo, pessoas com deficiência e pessoas em situação de rua”.

Agências líderes da ONU, incluindo ONU Mulheres, UNFPA, OMS e UNICEF, também rejeitaram as recomendações de Alsalem. Alegaram que políticas e programas de “violência de gênero” neutros em termos de gênero são exigidos pelo direito internacional.

Sua posição alinha-se estreitamente com a retórica de direita, citando frequentemente grupos conservadores anti-direitos LGBTQI em seus relatórios. Em fevereiro, ela acolheu a ordem executiva do presidente dos EUA, Donald Trump, que proíbe mulheres trans de esportes femininos e, em uma carta recente ao Comitê Olímpico Internacional, pediu a triagem sexual e a exclusão de mulheres trans das categorias esportivas femininas.

Em uma carta de 2022 à primeira-ministra escocesa, Nicola Sturgeon, ela alertou que as leis de autoidentificação “abrem a porta para homens violentos” em espaços exclusivos para mulheres. Essa lei foi bloqueada pelo governo do Reino Unido – uma decisão que a Suprema Corte confirmou em abril, determinando que “homem” e “mulher” na lei britânica se referem ao sexo biológico. Especialistas da ONU expressaram desde então preocupação de que a decisão possa legitimar políticas de exclusão. Alsalem, no entanto, elogiou a decisão como uma vitória para a segurança das mulheres.

O que mais alarma os ativistas é que sua linguagem parece estar legitimando um ressurgimento conservador na ONU. O governo Trump tem buscado eliminar referências de gênero dos textos da ONU e impor uma visão binária de sexo que se alinha com a formulação de Alsalem.

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Veja a declaração completa dos peritos da ONU aqui: