
No mês da Memória Trans, a ANTRA lança uma Nota Técnica inédita que consolida um diagnóstico preciso e urgente sobre a dignidade póstuma de pessoas trans e travestis no Brasil. O documento reúne fundamentos jurídicos, casos emblemáticos e recomendações estruturantes para que o sistema de justiça, a segurança pública, os serviços funerários e as políticas de saúde incluam de maneira efetiva o respeito à identidade de gênero após a morte como um direito humano fundamental. A Nota Técnica sobre Dignidade Póstuma como Direito Fundamental: Garantias para Pessoas Trans e Travestis no Brasil nasce diante de um cenário de violações recorrentes que incluem apagamento institucional, omissões administrativas, desrespeito ao nome social, rituais fúnebres incompatíveis com a identidade vivida e dependência quase absoluta da judicialização.
Casos como o de Keron Ravache, criança trans assassinada aos 13 anos e enterrada sob o nome de registro; Lourival Bezerra, homem trans tratado como um “mistério” pela mídia mesmo após décadas reconhecido por sua comunidade; Alana Azevedo, velada com roupas e estética impostas para negar sua identidade; e Sissy Kelly, sepultada sem o nome social utilizado oficialmente, entre outros, ilustram como a morte segue acompanhada de violência simbólica e institucional. Esses exemplos reforçam que o problema não está apenas na ausência de lei, mas na persistência de práticas transfóbicas que atravessam o Estado e a sociedade.
A Nota Técnica sistematiza avanços jurídicos importantes, como o precedente da retificação post mortem no Rio de Janeiro, e iniciativas legislativas como a “Lei Victoria Jungnet”, no Distrito Federal, que já garantem a inclusão do nome social em documentos de óbito e homenagens públicas. Ainda assim, a falta de uma política nacional gera insegurança, despadronização e revitimização das famílias. Para o advogado e consultor jurídico da ANTRA Júlio Mota de Oliveira, responsável pelo portal Direito ao Nome, “a dignidade póstuma é a última oportunidade que o Estado tem de reparar, ainda que minimamente, uma vida marcada por exclusões. Se o direito ao nome e à identidade não é garantido nem no momento final, estamos diante de uma falha estrutural, não de casos isolados”.
O texto destaca também que o respeito à identidade de gênero após a morte deve ser compreendido como extensão dos direitos fundamentais da personalidade, da dignidade humana, da memória e do luto. Propõe medidas como simplificação dos mecanismos de uso do nome social, padronização nacional dos procedimentos cartorários, possibilidade de retificação direta na certidão de óbito, reconhecimento da legitimidade de entidades sociais para requerer retificação post mortem, gratuidade dos processos, respeito aos ritos fúnebres e mecanismos formais de registro de vontade da pessoa trans ainda em vida. Para a desembargadora federal Inês Virgínia, integrante da Comissão de Equidade de Gênero do TRF3, “garantir a dignidade póstuma é garantir a continuidade da personalidade. A Justiça não pode permitir que a morte seja utilizada como instrumento final de apagamento, porque memória também é um direito”.
Os desafios apontados são amplos: ausência de normativas uniformes, resistência institucional, desconhecimento dos profissionais de segurança e saúde, interpretações restritivas sobre nome social e a persistência da discriminação que atravessa todas as etapas do processo pós-morte. As recomendações incluídas na Nota Técnica tratam justamente de enfrentar essa estrutura, ampliando a formação de agentes públicos, fortalecendo marcos normativos e garantindo condições para que nenhum corpo trans seja submetido ao apagamento pós-morte.
O lançamento no mês da Memória Trans marca não apenas uma agenda simbólica, mas um compromisso público com a história e com o futuro. A Nota Técnica reforça que respeitar a identidade após a morte é reconhecer a humanidade em vida. E que democratizar esse debate dentro do Judiciário, da segurança pública e da saúde é essencial para romper com a lógica do “duplo assassinato” que persegue pessoas trans no país. O documento se apresenta como referência para orientar decisões, políticas públicas e práticas institucionais que afirmem, de forma definitiva, que vidas e memórias trans não podem mais ser apagadas.
Baixe a Nota Técnica sobre Dignidade Póstuma como Direito Fundamental: Garantias para Pessoas Trans e Travestis no Brasil a seguir:










