Estudo revela a reorganização de correntes feministas transfóbicas e sua articulação com o ultraconservadorismo

Direitos e Política, Justiça, Pesquisas

“Fronteiras Borradas” revela a expansão de feminismos essencialistas e sua confluência com a política antigênero no Brasil.

Grupo Antitrans For Women Scotland

Uma nova pesquisa conduzida pelo Observatório de Sexualidade e Política (SPW), em parceria com o Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT+ da UFMG (NUH/UFMG) e a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), lança luz sobre um fenômeno inquietante: o avanço e a reorganização de correntes feministas essencialistas e transfóbicas no Brasil e sua crescente articulação com a extrema direita. O relatório, intitulado “Fronteiras Borradas: Movimentos Feministas e de Mulheres e Política Antigênero no Brasil”, contou ainda com o apoio da Ação Educativa, Cladem Brasil, Criola, Ipas Brasil e da campanha Nem Presa Nem Morta.

O estudo traça um panorama minucioso sobre a atuação dessas correntes, que têm ganhado projeção desde 2013, quando o debate sobre “ideologia de gênero” emergiu no cenário político. Combinando revisão de literatura, análise de redes sociais e entrevistas com ativistas e pesquisadoras, o relatório mapeia como esses grupos se estruturaram e se infiltraram em espaços de formulação política e de opinião pública, borrando as fronteiras entre campos ideológicos antes antagônicos.

De acordo com a pesquisa, as correntes feministas essencialistas — que negam o reconhecimento das identidades trans e defendem uma noção biologizante de mulher — passaram a se articular de forma mais intensa com atores do ultraconservadorismo e da extrema direita, sobretudo após a derrota de Jair Bolsonaro em 2022. Essa nova configuração, observa o relatório, revela uma tentativa de reocupação de espaço político e simbólico por meio do discurso antigênero, agora travestido de “defesa das mulheres”.

Para Sonia Corrêa, pesquisadora do SPW, compreender esse processo é crucial para enfrentar o avanço do autoritarismo travestido de feminismo.

“Essas correntes essencialistas têm operado um verdadeiro sequestro semântico do feminismo. Ao reivindicarem a bandeira dos direitos das mulheres, elas apagam décadas de luta por justiça de gênero, transformando o conceito de mulher em um instrumento de exclusão e ataque. É fundamental que os feminismos progressistas compreendam essa disputa e respondam a ela com rigor político e teórico”, afirma Corrêa.

A investigação mostra que, a partir de 2015, esses grupos ampliaram sua influência, especialmente ao se posicionarem contra a Lei de Alienação Parental, aproximando-se de setores conservadores que exploram a pauta da “proteção da infância” e dos “direitos maternos”. Essa convergência consolidou laços com figuras e instituições da extrema direita, que passaram a legitimar e a amplificar seus discursos. Durante o governo Bolsonaro, algumas dessas vozes chegaram a ocupar espaços estatais e a influenciar políticas públicas voltadas às mulheres.

Contudo, foi no pós-2022 que o campo essencialista se adensou e adquiriu contornos institucionais mais definidos, com a criação de organizações e plataformas que reproduzem a retórica antigênero sob a fachada de movimentos feministas independentes. A análise de redes sociais realizada pelo estudo revelou um emaranhado de conexões que atravessam o espectro político — da esquerda à ultradireita —, demonstrando como a fluidez dessas relações tem provocado confusão dentro dos próprios feminismos.

O relatório também destaca o efeito corrosivo desse fenômeno nas lutas por direitos LGBTQIA+, especialmente no que diz respeito à desinformação e ao incitamento à transfobia. Segundo o estudo, a amplificação dessas vozes nas redes e na mídia tem produzido uma atmosfera de hostilidade crescente contra pessoas trans, ao mesmo tempo em que reabre disputas internas sobre quem tem o direito de falar em nome do feminismo.

A presidenta da ANTRA, Bruna Benevides, ressalta que o enfrentamento a esse movimento exige lucidez política e solidariedade entre os campos progressistas.

“O essencialismo que nega a existência das pessoas trans não é um debate teórico: é uma estratégia de poder. Ao se alinhar à extrema direita, essas correntes passam a ser cúmplices de um projeto autoritário que quer retroceder em todos os direitos. O desafio é reconstruir pontes e reafirmar que o feminismo verdadeiro é aquele que inclui, não o que exclui”, afirma Benevides.

A pesquisa também apresenta dois estudos de caso emblemáticos. O primeiro analisa os ataques sistemáticos ao Ministério das Mulheres desde sua recriação em 2023, com campanhas digitais e articulações que visam deslegitimar a atuação da pasta. O segundo examina a polêmica em torno da missão da Relatora Especial da ONU sobre Violência contra Mulheres e Meninas, cujo adiamento foi marcado por controvérsias relacionadas a vínculos da relatora com o campo essencialista.

O relatório lançado após a publicação do Dossiê Matria aprofunda a investigação ao expandir o foco para o ecossistema mais amplo de feminismos essencialistas no Brasil, revelando como tais correntes se articulam politicamente com a extrema direita e alerta que, embora essas correntes representem uma minoria dentro dos feminismos, sua capacidade de articulação e infiltração as torna um vetor poderoso de desinformação e polarização. Nesse cenário, a defesa dos direitos humanos e a preservação dos avanços conquistados nas últimas décadas dependem de uma reação articulada entre movimentos feministas, academia e sociedade civil.

Em tempos de recrudescimento do conservadorismo e de tentativas constantes de retrocesso, “Fronteiras Borradas” é um convite à vigilância e à reconstrução do diálogo entre os feminismos. Mais do que um estudo, o relatório funciona como um alerta sobre o risco de confundir discursos libertários com projetos de exclusão. Ao iluminar as zonas cinzentas desse embate, ele reafirma que a luta por igualdade de gênero só é legítima quando reconhece e defende todas as formas de existir.

Acesse e baixe a seguir o Relatório Final da pesquisa “Fronteiras Borradas: Movimentos Feministas e de Mulheres e Política Antigênero no Brasil”.

Contra a Transfobia: LGB cis antitrans foram retirados da Conferência Nacional LGBTQIA+

Direitos e Política, Justiça

A 4ª Conferência Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, realizada em Brasília, foi palco de um episódio que escancara os desafios ainda presentes mesmo nos espaços criados para garantir a diversidade e a inclusão. Delegadas e delegados protocolaram um requerimento formal solicitando o descredenciamento representantes acusados de condutas transfóbicas reiteradas e contrárias aos princípios da Conferência e dos direitos humanos. A denúncia foi acolhida e resultou na retirada definitiva do espaço deliberativo, em decisão amplamente ratificada pela plenária com aplausos e manifestações de apoio às pessoas trans.

O documento entregue à Comissão Organizadora denuncia que haviam pessoas promovendo assédio antitrans, tumultos, constrangimentos e disseminando discursos trans-excludentes em grupos de trabalho para a construção de propostas, além de tentar propor moções com o objetivo de suprimir direitos garantidos às pessoas trans e defender a retirada da letra T da silga LGBTQIA+. As falas e movimentações denunciadas ultrapassaram o campo da liberdade de expressão e do debate democrático: foram manifestações abertamente discriminatórias e desumanizadoras, atentando contra a dignidade de participantes trans e não binárias, e ferindo o caráter seguro, plural e inclusivo da Conferência.

Com base no artigo 2º, §3º, inciso IV do Regimento Interno, os denunciantes lembram que não são admitidas “propostas, moções ou manifestações de quaisquer tipos de caráter LGBTQIAfóbico”, reafirmando o princípio do não retrocesso em matéria de direitos humanos. A decisão da Comissão Organizadora em descredenciar as pessoas denunciadas, apoiou-se também no compromisso de não permitir que ideais que pretendem isolar, marginalizar, silenciar, excluir ou perseguir pessoas trans não são vem vindas, considerando sobretudo a Constituição Federal, que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana e veda qualquer forma de discriminação, e nos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil que versam sobre a proteção da identidade de gênero. O documento cita ainda o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que reconhece a homotransfobia como crime de racismo.

A Conferência, espaço construído para consolidar políticas públicas inclusivas, não pode ser terreno para discursos que negam a autodeterminação de gênero ou reduzem o conceito de gênero a critérios biológicos e essencialistas — argumentos do movimento antigênero e retórica da extrema direita. Nesse contexto, torna-se essencial compreender o papel de grupos como a LGB Alliance, organização que se apresenta como defensora dos direitos de gays, lésbicas e bissexuais, mas que na prática promove uma agenda voltada à negação da identidade de gênero e à exclusão das pessoas trans; ou ainda da mátria – entidade que tem como pauta única atacar os direitos trans ou gays com bolsonaro, que representam verdadeira contradição considerando os retrocessos promovidos pelo governo fascista do inelegível em matéria dos direitos humanos, especialmente de LGBTQIA+.

Como aponta Bruna G. Benevides, “a Alliança LGB é um grupo que se pretende maior do que realmente é, e que defende critérios biológicos para definir homens e mulheres e suas orientações sexuais, negando a existência de pessoas trans ou qualquer possibilidade de reconhecimento da identidade de gênero”. Esse posicionamento essencialista — que reduz gênero ao binário fixo e ao sexo biológico — não soma à luta por direitos humanos, mas ataca diretamente a presença digna das pessoas trans nos espaços de participação política. Esses agentes articulam-se com grupos conservadores e se utiliza de discursos supostamente feministas ou “internos ao movimento LGB-cis” para legitimar uma pauta antitrans, contribuindo para a desmobilização das lutas reais dos movimentos LGBTQIA+ e legitimando formas latentes de transfobia. Essa estratégia, como analisa Benevides, é a de um “cavalo de Tróia dentro do arco-íris”, ao buscar manter uma imagem hegemônica cisgênera como figura central da representação LGBTQIA+, ferindo não apenas a ética da inclusão, mas também traindo a historia da luta por liberdade corporal, sexual e de gêneros, além dos tratados internacionais e decisões que garantem o direito à identidade e à autodeterminação de gênero.

Essas articulações revelam um projeto político de retrocesso: grupos que se apresentam como defensores de “valores originais do movimento LGBT”, mas que, na prática, operam como braços do ecossistema antigênero, com alianças obscuras junto à extrema direita. Não por acaso, parte desse segmento esteve entre os 29% da população LGBTQIA+ que votou em Jair Bolsonaro em 2018, segundo dados do Instituto Locomotiva, endossando um governo que sistematicamente atacou pessoas trans, mulheres e povos indígenas.

Por isso, a decisão da Conferência não representa censura, mas proteção. Proteger pessoas trans de ataques em um espaço que deveria acolhê-las é uma medida ética e política indispensável. A exclusão das pessoas reafirma o compromisso da Conferência com o respeito à diversidade e à dignidade humana, garantindo um ambiente seguro para todas as existências, conforme pediram as delegadas signatárias do requerimento.

Durante a plenária, o anúncio do descredenciamento foi recebido com aplausos e palavras de apoio às pessoas trans, ecoando o espírito coletivo de resistência e solidariedade que marcou o evento. A ministra Macaé Evaristo, em sua fala de abertura, já havia enfatizado que não há luta por direitos humanos sem as pessoas trans, posição reiterada por Symmy Larrat, secretária nacional LGBTQIA+, por representantes governamentais e pela sociedade civil.

A Conferência deixou um recado inequívoco: não há espaço para discursos de ódio disfarçados de divergência política. Quem tenta excluir pessoas trans do debate não está propondo rupturas — porque nunca esteve verdadeiramente ao lado da luta LGBTQIA+, do feminismo, das lutas antirracistas ou da democracia. A defesa da diversidade é inegociável, e o Brasil segue dizendo, com coragem e lucidez: nenhum passo atrás nos direitos humanos e na defesa dos direitos trans.

ABGLT e ANTRA reforçam denúncia sobre avanço da agenda antigênero e cobram atenção internacional à defesa de mulheres trans na CSW70

Direitos e Política, Justiça

A Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) apoiada pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) apresentaram à 70ª Sessão da Comissão sobre a Situação da Mulher (CSW70), das Nações Unidas, um documento contundente em defesa dos direitos humanos de travestis e mulheres trans no Brasil e na América Latina. Conforme as diretrizes da ONU Mulheres, organizações não governamentais com status consultivo junto ao Conselho Econômico e Social da ONU podem submeter declarações escritas.

O texto reafirma o compromisso das organizações com a Agenda 2030 e com a plena implementação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), alertando para o avanço global das políticas antigênero que ameaçam conquistas históricas no campo dos direitos das mulheres e da população LGBTQIA+.

O documento enviado aponta que travestis e mulheres trans seguem sendo alvo de violência estrutural e sistêmica, com negação de acesso à educação, saúde, trabalho e moradia, além de exposição extrema à violência física e simbólica. O Brasil, novamente, aparece como o país que mais mata pessoas trans no mundo — um reflexo direto da omissão do Estado e da persistência de estruturas patriarcais, racistas e cisnormativas que impedem a participação dessas mulheres em espaços de poder e decisão.

As entidades denunciam também a manipulação de discursos de “proteção às mulheres” para legitimar iniciativas legislativas e políticas que, na prática, promovem exclusão e institucionalizam a transfobia. Tais movimentos, segundo o texto, “ameaçam diretamente os princípios de igualdade e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)”, em especial os ODS 5 (Igualdade de Gênero), 10 (Redução das Desigualdades) e 16 (Paz, Justiça e Instituições Eficazes).

Recomendações estratégicas

Entre as recomendações apresentadas no documento à comunidade internacional e aos Estados-membros da ONU, destacam-se:

  • Implementar políticas efetivas de combate à violência contra mulheres trans, com dados desagregados por identidade de gênero;
  • Garantir acesso universal à saúde integral e específica para pessoas trans, com reconhecimento de gênero sem barreiras patologizantes;
  • Promover a participação política e institucional de travestis e mulheres trans em espaços de decisão;
  • Condenar e prevenir iniciativas antigênero que buscam institucionalizar a exclusão e a discriminação sob o pretexto de “proteger mulheres e crianças”;
  • Reafirmar a perspectiva de gênero como eixo estruturante das políticas para mulheres, assegurando a proteção explícita da identidade de gênero no âmbito da CSW e de outros mecanismos internacionais.

A ABGLT e a ANTRA reforçam, ainda, a importância da participação direta de mulheres trans na formulação, acompanhamento e avaliação das políticas globais de igualdade de gênero, e pedem que os mecanismos internacionais de direitos humanos estejam atentos à rápida disseminação da agenda antigênero no Brasil e em outros países.

“A defesa das mulheres trans é parte inseparável da luta global das mulheres. Não há feminismo possível se a exclusão de mulheres trans for admitida. Defender nossas vidas é defender o próprio sentido da igualdade e da justiça de gênero”, afirma Bruna Benevides, presidenta da ANTRA.

O envio do documento às Nações Unidas marca um passo decisivo na reafirmação de que a igualdade de gênero deve incluir todas as mulheres, sem retrocessos e sem concessões à retórica discriminatória da agenda antigênero.

Para Victor de Wolf, presidente da ABGLT, “como a maior entidade LGBTQIA+ do país, reafirmamos nosso compromisso histórico com a luta trans e com a defesa inegociável dos direitos humanos. Nenhuma política de igualdade será completa enquanto travestis e mulheres trans continuarem à margem.”

O envio conjunto da ABGLT e da ANTRA reforça o compromisso das organizações brasileiras com a promoção dos direitos humanos e da igualdade de gênero, alinhando-se aos esforços globais para garantir a participação ativa e representativa de pessoas LGBTQIA+ nas discussões internacionais sobre políticas públicas e direitos humanos.

Pesquisa inédita explora lobby antitrans da Matria com apoio de universidades e entidades de direitos humanos

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Members of the transgender and gender non-binary community and their allies gather to celebrate International Transgender Day of Visibility, March 31, 2017 at the Edward R. Roybal Federal Building in Los Angeles, California. International Transgender Day of Visibility is dedicated to celebrating transgender people and raising awareness of discrimination faced by transgender people worldwide. / AFP PHOTO / Robyn Beck (Photo credit should read ROBYN BECK/AFP via Getty Images)

A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) organizou o Dossiê Matria: o lobby antitrans disfarçado de defesa das mulheres e crianças, um documento que se firma como marco histórico de investigação, mobilização e resistência diante da crescente onda antigênero que se espalha pelo Brasil e pelo mundo.

O estudo é fruto de uma ampla parceria entre a ANTRA, o Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT+ da Universidade Federal de Minas Gerais (NUH/UFMG), o Sexual Politics Watch (SPW/ABIA) e o Coletivo Chama, com apoio institucional de organizações de referência como ONG Criola, Geledés – Instituto da Mulher Negra, Evangélicas pela Igualdade de Gênero (EIG), Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT), Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (RFS), Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA) e Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT).

O dossiê também conta com o respaldo científico de núcleos e grupos de pesquisa de 11 universidades federais, entre eles o Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/UERJ), o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM/UFBA), o Núcleo Feminista de Pesquisas em Gênero e Masculinidades (GEMA/UFPE), o Núcleo de Estudos sobre Diversidade Sexual e de Gênero do CEAM/UnB, o Núcleo Trans Prof. Roberto Farina (UNIFESP), o Laboratório Trans da UFSC, o MatematiQueer (UFRJ) e o Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero (UFRGS).

Com 55 páginas, o documento elaborado ao longo dos dois últimos anos examina os principais pontos da atuação da chamada Associação de Mulheres, Mães e Trabalhadoras do Brasil – Matria, expondo sua conexão com redes internacionais da ultradireita e com a agenda antigênero global. A investigação revela que, apesar de se apresentar como uma organização voltada à defesa das mulheres e crianças, a Matria tem direcionado seus esforços à produção de narrativas e ações judiciais que buscam restringir direitos fundamentais das pessoas trans — entre eles o direito à autodeterminação de gênero, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 4275), e a criminalização da homotransfobia (ADO 26).

“O dossiê cumpre um papel essencial de transparência e de responsabilidade social. Mostramos que há uma articulação perigosa entre discursos supostamente feministas e práticas que reforçam a necropolítica de gênero, desumanizando pessoas trans sob a aparência de defesa e proteção das mulheres”, afirma Bruna Benevides, presidenta da ANTRA.

A publicação detalha ainda a incidência da Matria em espaços institucionais e legislativos, sua aproximação com setores ultraconservadores e a disseminação de pânicos morais em torno de temas como infância, esportes, saúde e identidade de gênero. Ao reunir evidências documentais, decisões judiciais e análises comparadas, o dossiê se consolida como uma ferramenta indispensável para pesquisadores, formuladores de políticas públicas, operadores do direito e movimentos sociais comprometidos com a democracia e os direitos humanos.

Para Sonia Corrêa, coordenadora do Sexual Politics Watch (SPW) e pesquisadora associada à ABIA,

“o Dossiê oferece dados empíricos consistentes para compreender o fenômeno contemporâneo das ofensivas antigênero, suas origens internacionais e suas formas de infiltração no campo progressista. Ele traduz, em linguagem acessível e rigor analítico, o que está em jogo: a tentativa de transformar o discurso de proteção das mulheres em instrumento de exclusão e censura”.

A pesquisa chama atenção sobre como as teses da Matria já foram rechaçadas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que reconheceram o caráter discriminatório e a falta de fundamentação de suas “notas técnicas” e ações judiciais. Em contraste com as decisões das cortes e com os tratados internacionais ratificados pelo Brasil, a organização tenta impor retrocessos disfarçados de debates acadêmicos ou jurídicos, desconsiderando o princípio da dignidade humana e a jurisprudência consolidada em matéria de direitos trans.

Além da denúncia, o dossiê é um convite à reflexão coletiva sobre a urgência de reconstruir alianças éticas, políticas e acadêmicas em defesa da pluralidade e da vida. “Não basta identificar as ofensivas antigênero. É preciso enfrentá-las com produção de conhecimento, diálogo intersetorial e mobilização social. O Dossiê Matria é um chamado à ação”, reforça Benevides.

O documento está disponível para download gratuito no site da ANTRA (www.antrabrasil.org) e será distribuído em formato digital para universidades, órgãos públicos, coletivos feministas e organizações da sociedade civil.

Baixe a seguir:

Conferência Nacional de Mulheres aprova moção de repúdio a grupos antigênero

Direitos e Política, Notas e Ofícios

Durante a V Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, realizada em Brasília, o conjunto de mulheres presentes aprovaram por unanimidade uma moção de repúdio contra organizações transexcludentes como a Matria, “Aliança LGB” e o grupo “Raízes Feministas”. O documento que contou com adesão massiva das participantes, denuncia a atuação dessas entidades, reconhecidas como reprodutoras do discurso antitrans alinhado com a extrema direita e o fundamentalismo religioso, que propagam narrativas de que pessoas trans representariam ameaça a mulheres cis e as crianças.

A moção afirma que tais setores negam avanços históricos do feminismo, insistindo em um conceito biologizante, conservador e excludente de “mulher”, além de alimentar práticas de perseguição contra mulheres trans e travestis. No texto, são destacados os dados alarmantes sobre a realidade dessa população no Brasil: expectativa de vida de apenas 35 anos, 90% empurradas à prostituição compulsória e subrepresentação em espaços de poder.

Além disso, na plenária final de aprovação de propostas para o documento final da conferências, foi decidido que todas as políticas oriundas da conferência terão de assegurar a inclusão de mulheres trans e travestis, garantindo a perspectiva de gênero, classe e raça como eixos transversais, e a proposta específica contra a violência motivada por Transfobia teve a aprovação de 95% das Mulheres presentes. Aquilo que já sabíamos se confirmou: a imensa maioria das mulheres de todo o país, disse um sonoro NÃO ao racismo, ao sexismo, à lesbofobia e à transfobia.

Mulheres trans e travestis não foram rejeitadas: foram acolhidas, reconhecidas e legitimadas pelas próprias mulheres presentes. A rejeição recaiu sobre agentes que promovem segregação e alimentam transfobias diversas alinhadas ao patriarcado, que buscam sabotar avanços em políticas públicas inclusivas e igualitárias. As mulheres participantes da Conferência deixaram evidente que não há espaço para posturas excludentes ou manipuladas por interesses da extrema-direita.

Essa vitória não é apenas simbólica — é a reafirmação das alianças históricas entre o movimento trans, o movimento negro e todos os movimentos do campo popular que sempre lutaram, lado a lado, contra a exclusão e a violência. Destacando assim que Mulheres trans são bem-vindas, em todos os espaços da luta feminista e popular.

Bruna Benevides, presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), avaliou a aprovação da moção como um marco político e simbólico diante da crescente articulação de grupos que utilizam teorias feministas, mas operam em convergência com agendas ultraconservadoras.

“Esses grupos que se dizem defensores das mulheres, na prática, reforçam o projeto da extrema direita, negam a nossa humanidade e tentam nos expulsar dos espaços de participação social. Mas a Conferência mostrou que as mulheres brasileiras estão ano nosso lado e não aceitarão retrocessos. As mulheres trans e travestis estão aqui, junto as lutas das demais mulheres, e nossa voz não será silenciada.”, declarou Benevides.

A presidenta da ANTRA lembrou ainda que a ONU Mulheres (Global) já reconheceu a atuação de tais organizações antigênero como parte de uma rede internacional de grupos antidireitos, conectados a setores conservadores antigênero que atuam contra políticas de diversidade, direitos reprodutivos e combate à violência de gênero.

“Não estamos diante de um debate interno do feminismo, mas de uma estratégia global de perseguição, com financiamento e alianças políticas que atacam os avanços democráticos. Essa ofensiva precisa ser nomeada pelo que é: uma tentativa de reinstaurar a lógica cisheteropatriarcal que historicamente oprime todas as mulheres.”, reforçou Benevides.

Impactos e desafios

O crescimento da agenda transexcludente no Brasil representa um risco concreto para a construção de políticas públicas inclusivas. A difusão de narrativas que associam pessoas trans à violência sexual ou à suposta ameaça às mulheres ou à infância fortalece estigmas sociais, amplia a vulnerabilidade dessa população e legitima práticas de violência. Além disso, tais discursos fragmentam o campo progressista, abrindo espaço para que a extrema direita instrumentalize a pauta de gênero em suas estratégias eleitorais.

O reconhecimento internacional desses grupos como “antidireitos” também revela a dimensão geopolítica do problema: organizações brasileiras têm replicado manuais e estratégias de grupos estrangeiros, alinhando-se as políticas de Donald Trump e a projetos que visam deslegitimar conquistas democráticas e de direitos humanos em escala global.

Possíveis soluções

Entre os caminhos apontados por especialistas e militantes estão:

  • Fortalecimento das alianças interseccionais entre movimento trans, movimento negro, feminismo popular, movimento sindical e organizações de direitos humanos;
  • Monitoramento das redes de financiamento que sustentam esses grupos, ampliando a transparência e cobrando atuação do Ministério Público e dos órgãos de controle;
  • Educação e formação feminista interseccional que valorize a diversidade de experiências das mulheres;
  • Ampliação da participação trans em espaços institucionais, garantindo representatividade efetiva nos conselhos e nas políticas públicas.

Para Benevides, o momento exige firmeza e estratégia coletiva:

“A resposta não pode ser apenas reativa. Precisamos construir uma frente ampla de mulheres em toda a sua diversidade para enfrentar a ofensiva antigênero. Só assim poderemos proteger as conquistas democráticas e garantir que nenhuma de nós fique para trás.”

A seguir a íntegra da Moção:

Título: Moção de Repúdio ao Movimento Antigênero e Transexcludente

Nós, mulheres trans, travestis e cis aliadas, reunidas na 5ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, repudiamos as intenções supremaCIStas de grupos transexcludentes, como MATRIA, “Aliança LGB” e “Raízes Feministas”.

Esses setores reproduzem o discurso da extrema direita e do fundamentalismo religioso, ao alegar que pessoas trans seriam ameaça para mulheres cis e crianças. Tal narrativa ignora décadas de produções feministas que compreendem o gênero como construção social e interseccional, reduzindo mulheres a uma essência biologizante e negando existências que escapam ao padrão cisreprodutivo. A acusação de que mulheres trans e travestis seriam “homens infiltrados” é falaciosa diante da realidade de exclusão que nos atravessa: expectativa de vida de 35 anos, 90% empurradas à prostituição compulsória e acesso restrito a espaços de poder.

Nesta conferência, o Conselho Nacional de Direitos das Mulheres reafirma o conceito de mulheridades, reconhecendo diferentes vivências em lutas comuns contra racismo, misoginia, capacitismo e transfobia.

Assim, afirmamos que não há perseguição às mulheres cis críticas de gênero no Brasil, enquanto mulheres trans e travestis vêm sendo perseguidas desde a ditadura militar e principalmente pela extrema direita, e rejeitamos ataques à nossa plena participação, pois violam o regulamento da conferência e apenas reforçam o sistema cisheteropatriarcal que nos mata.

Defendemos políticas com perspectiva de gênero, espaços seguros e diálogos interseccionais, para que nenhuma mulher seja silenciada ou deixada para trás. Nossa luta é por todas e para todas.”