
A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) e o Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT) anunciaram que irão recorrer da decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Flávio Dino, que cassou a liminar concedida em ação civil pública movida pela PFDC/AC. A liminar havia restabelecido o direito ao acesso de crianças e adolescentes trans aos tratamentos de saúde indispensáveis à sua saúde psicológica, social e integral, suspensos após ação do Conselho Federal de Medicina (CFM). Dino acatou pedido do Conselho e reconheceu que a competência para julgar o tema é da Suprema Corte, e não da primeira instância, que havia suspendido a resolução.
A decisão de Dino, considerada surpreendente e politicamente ambígua, interrompe um avanço construído a duras penas por organizações e profissionais de saúde que há décadas lutam pela consolidação de protocolos de cuidado baseados em evidências científicas e no respeito à dignidade humana. Ao optar por argumentos de natureza meramente procedimental, o ministro desconsidera o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e ignora os impactos concretos e imediatos de sua decisão na vida de crianças e jovens trans, que dependem dessas políticas para existir com saúde, segurança e acolhimento. A decisão foi fortemente celebrada pelo CFM, grupos antitrans e por políticos da extrema-direita.
Bruna Benevides, presidenta da ANTRA, afirmou que a decisão “revela um perigoso descompasso entre a Constituição e a prática judicial, que acaba privilegiando tecnicalidades jurídicas em detrimento da vida de crianças e adolescentes trans. O Supremo deveria ser a última instância de proteção dos direitos fundamentais, não mais um espaço onde nossas existências são submetidas a disputas políticas e religiosas”.
O advogado e constitucionalista Paulo Iotti, que representa a ação, destacou que a liminar cassada se baseava em fundamentos sólidos do MPF, que buscava assegurar a continuidade dos tratamentos reconhecidos como essenciais pela ciência e pela Organização Mundial da Saúde. “A decisão de Dino prioriza o debate processual sobre a urgência da matéria, ignorando que estamos lidando com direitos humanos e saúde pública. Cada dia sem acesso ao cuidado é uma violação concreta de direitos”, afirmou.
A crítica ao ministro também se insere num contexto mais amplo de observação sobre sua trajetória recente no STF. Reportagem do site Plató Brasil mostrou o aumento das menções à Bíblia em seus votos e falas públicas, levantando questionamentos sobre o uso crescente de referências religiosas no exercício de um cargo que, pela Constituição, deve se pautar pela laicidade do Estado. A matéria ainda destaca que Dino vem disputando simbolicamente com André Mendonça — indicado por Jair Bolsonaro e autodeclarado “terrivelmente evangélico” — o papel de ministro com discurso mais afinado à moral cristã, em um momento em que o país precisa de decisões baseadas em direitos e não em dogmas.
A aproximação entre convicções religiosas e a condução de temas que envolvem a população LGBTQIA+, especialmente a pauta trans, preocupa especialistas em direitos humanos. Esse não é a primeira decisão de Dino contra os direitos trans. Para Bruna Benevides, “quando um ministro do STF opta por citar a Bíblia ao lado da Constituição, abre-se um precedente perigoso. A posição do Estado e a garantia de direitos universais passam a ser substituídas por moralismos seletivos que excluem as minorias, sobretudo pessoas trans que neste momento sao alvos de agendas politicas contra nossos direitos e que tem ganhado força com as ordens executivas de Donald Trump e pela extrema direita global”.
Manifestação em ADI 7806
Paralelamente ao recurso, ANTRA e IBRAT, também protocolaram manifestação na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 7806), na qual requerem que o relator, ministro Cristiano Zanin, adote a mesma postura procedimental de Flávio Dino — deferindo medida cautelar em decisão individual para posterior análise do Plenário, a fim de garantir segurança jurídica e continuidade da proteção à saúde de crianças e adolescentes trans. O pedido é assinado pelo Advogado da ADI 7806, Paulo Iotti.
“O CFM ignora a Medicina Baseada em Evidências. Todos os Centros de Referência que enviaram informações ao processo, a pedido do ministro Zanin, confirmaram que o bloqueio hormonal da puberdade em crianças trans e a hormonização a partir dos 16 anos são reversíveis e promovem bem-estar psicológico e social, enquanto sua ausência causa sofrimento, depressão, risco de suicídio e automedicação. Mostraram que princípios biomédicos da beneficência e da não-maleficência justificam nossa ação, mostrando que as proibições do CFM são inconstitucionais, anticientíficas, arbitrárias e desproporcionais, violando direitos fundamentais à saúde, ao livre desenvolvimento da personalidade e à não-discriminação“, complementa Iotti.
Segundo as entidades, trata-se de uma manifestação que vinha sendo elaborada há meses e que aguardava apenas os pareceres da Advocacia-Geral da União (AGU) e da Procuradoria-Geral da República (PGR) para ser protocolada. No documento, rebatem ponto a ponto as afirmações negacionistas e anticientíficas apresentadas pelo Conselho Federal de Medicina no processo, sustentando seus argumentos com respaldo em estudos e manifestações de entidades médicas nacionais e internacionais. O alinhamento entre a posição do Ministério da Saúde, CFM e AGU chamou atenção de entidades da sociedade civil que publicaram nota de repúdio.
A manifestação reafirma, com base nas evidências apresentadas pelos principais centros de referência do país, a necessidade do bloqueio hormonal da puberdade em crianças trans e da hormonização em adolescentes trans a partir dos 16 anos, como medidas essenciais para a preservação da saúde psicológica e social, pelos benefícios comprovados que trazem e pelos graves prejuízos que sua ausência acarreta.
Os argumentos foram elaborados a partir de pareceres técnicos de instituições de excelência requisitados pelo ministro Zanin, entre elas o Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero do Hospital das Clínicas de São Paulo (AMTIGOS/HC-SP), o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFM/USP), o Programa Transdisciplinar de Identidade de Gênero do Hospital das Clínicas de Porto Alegre (PROTIG/HCPA), o Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (NESA/UERJ), o Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (HC-UFU) e o Hospital Universitário Professor Edgard Santos da Universidade Federal da Bahia (HUPES/UFBA).
O recurso e a manifestação conjunta marcam um momento decisivo na luta pela manutenção de políticas públicas de saúde voltadas à população trans infantojuvenil, ameaçadas por decisões judiciais que flertam com o retrocesso e a desresponsabilização do Estado. “Não estamos falando de ideologia, mas de saúde pública e direitos fundamentais”, concluiu Benevides. “O que está em jogo não é apenas uma liminar, mas o reconhecimento de que nossas crianças e jovens têm o direito de crescer com dignidade, amparados por um Estado que deve proteger — e não julgar — quem são.”





